sábado, 13 de setembro de 2008

É possível?

Estou aqui sentado no meu pequeno quarto, eu, Brigge, tenho vinte e oito anos e de quem ninguém sabe. Estou aqui sentado e não sou nada. E no entanto este nada começa a pensar, e, num quinto andar, por uma tarde pardacenta de Paris, pensa este pensamento:

É possível, pensa este nada, que se não tenha ainda visto, reconhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milênios para observar, refletir e anotar e que se tenha deixado passar os milênios como recreio da escola em que se come o pão com manteiga e uma maça?

Sim, é possível.

É possível que, a despeito de invenções e progressos, a despeito da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado à superfície da Vida? É possível que se tenha recoberto mesmo esta superfície - que no fim e ao cabo seria ainda alguma coisa - com uma substância incrivelmente enfadonha, que a torna parecida com móveis de salão durante férias de Verão?

Sim, é possível.

É possível que toda a história do universo tenha sido mal compreendida? É possível que o passado seja falso porque se falou sempre de suas multidões como se se contasse de um ajuntamento de muitos homens, em vez de falar daquele em torno do qual elas se reuniam, porque era estrangeiro e morreu?

Sim, é possível.

É possível que julgasse ser preciso recuperar o que aconteceu antes de ter nascido? É possível que fosse perciso recordar a cada um que nasceu dos anteriores, que o sabia portanto e não devia tar ouvidos a outros que pretendiam saber coisa diferente?

Sim, é possível.

É possível que todos estes homens conheçam com toda a exatidão um passado que nunca existiu? É possível que todas as realidades nada sejam para eles; que a sua vida decorra sem estar ligada a anada, como um relogio num quarto vazio - ?

Sim, é possível.

É possível que se não saiba nada das raparigas que no entanto vivem? É possível que se diga "as mulheres", "as crianças", "os rapazes" e não se perssinta (a despeito de toda a cultura se não pressinta) que todas estas palavras já há muito tempo que não têm plural, mas apenas inúmeros singulares?

Sim, é possível.

É possível que haja pessoas que digam "Deus" e suponham que isso é algo de comum? - E vê estes dois meninos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho copra outro igualzinho no mesmo dia. E mostram um ao outro os canivetes passada uma semana, e vê-se então que eles só muito de longe se parecem, - tão diferentemente eles se desenvolveram em mãos diferentes (ora, diz a mãe de um deles: se vós pondes logo tudo a servir e tudo gastais... -). Ah, é verdade: é possível acredtar que se possa ter um Deus sem o usar?

Sim, é possível.

Mas se tudo isso é possível, se tem mesmo uma só ligeira aparência de possibilidade, - então, por quem sois!, é preciso fazer qualquer coisa! O primeiro quidam que teve esse pensamento inquietante, tem de começar a fazer qualquer coisa do que se descuidou; mesmo que seja um qualquer, sem ser o mais apropriado: pois se não há outro... Este jovem, esse estrangeiro sem importância, esse Brigge, terá de sentar no seu quinto andar e escrever, dia e noite: sim, terá de escrever, e isso será o fim.

Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke.

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