quarta-feira, 7 de julho de 2010

Adendo ao último post

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Os ombros suportam o mundo,
de Carlos Drummond de Andrade

O futebol grita por liberdade

É sabido e batido que, hoje, o futebol é tudo, menos futebol. Ele é cada vez mais uma gigantesca indústria que movimenta bilhões e bilhões de reais, e cada vez menos futebol. Também é sabido e batido o sentimento nostálgico que nos ataca quando comparamos o futebol do passado com o futebol de hoje, este futebol-indústria, futebol-dinheiro, este futebol maltratado por tudo e todos.

Diante destas evidências, perguntamos: será possível e razoável imaginar um futuro onde o futebol seja mais livre, um futuro onde exista um futebol mais futebolístico?

A pergunta não exige resposta imediata, mas reflexão. Nesse sentido, cabe perguntar: o que é o futebol? O que é o esporte?

Não é preciso ir muito longe para obter um aceno, uma pista. Basta prestar atenção na linguagem. A palavra 'esporte' deriva do antigo francês desport (de onde vem o nosso 'desporto'). É formada por des, que diz 'longe', e porter (do latim portare), que diz 'levar', 'carregar'. O esporte é algo que nos carrega para longe. Podemos perguntar: longe do que? Os estudiosos estimam que a palavra nascera em 1300, periodo próximo ao da conhecida Guerra dos Cem Anos. Esta informação nos dá a medida exata do que o esporte procura afastar o homem. É por isso que, em francês, desporter significa 'afastar a mente dos assuntos sérios', e 'desporto' e 'esporte' significam 'jogo', 'atividade lúdica', 'passatempo prazeroso'.

Isso faz do esporte – e do futebol – algo leviano? Não. A palavra ‘esporte’ diz: o futebol é algo que acontece quando todos os ‘assuntos sérios’ estão resolvidos. Quando o homem não precisa se preocupar em ter comida para si e seus filhos, quando não precisa se preocupar em proteger sua própria vida do outro, em suma, quando as condições básicas de sua existência estão satisfeitas, ali começa o futebol. E ali o homem está livremente entregue ao futebol, pois não há nenhum ‘assunto sério’ (pense em uma guerra) lhe roubando a liberdade. E então, livre, o homem doa ao futebol todo o seu sangue, coração, fogo, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade. Deste modo, o futebol é manifestação livre e gratuita do que há de belo no homem, pois o homem o faz por fazer, sem precisar de porquês ou justificativas posteriores. E é por isso que o esporte é belo, e é por isso que somos amantes do esporte. Esta é a essência e o significado primeiro do esporte, e, por extensão, do futebol.

Apesar disso, verificamos que nossa situação é totalmente refratária ao futebol. Se, de um lado, o futebol é algo que nos leva para longe dos ‘assuntos sérios’, por outro lado, o futebol é o sonho de fartura e dignidade para os milhões que não possuem o básico. Através do futebol, sonham em obter o básico que lhes é negado. Isto, por si só, perverte o futebol. Pois a situação, como uma mestra megera, o obriga a tornar-se algo sério. A partir daí diversas aberrações ganham espaço. Em nome do futebol, passa a ser válido matar outros homens nos estádios em nome do futebol. Em nome do futebol, passa a ser válido todo o tipo de armação que garanta a vitória. Todas essas perversidades nascem quando o futebol se torna sério. Os dirigentes, ao invés de implementar as soluções tecnológicas que ajudariam o futebol, preferem deixá-lo agonizando. Mas esta ajuda é apenas um amargo remédio: o grave é nos encontrarmos na necessidade do remédio, e não existe solução tecnológica que nos salve.

O futebol tornou-se um negócio. Não se quer saber mais do futebol propriamente dito: interessa apenas é que ele esteja sempre à disposição dos consumidores. Ao invés de dizer o que e como o futebol é, a mídia o vende como o magnífico espetáculo que ele já não é. Tudo em nome do negócio. Por isso, nosso país foi colocado à disposição do futebol-indústria, que consumirá o suado dinheiro do povo para acontecer em 2014. Em nome do futebol, colocamos nosso lar inteiramente à disposição. Em um segundo, reduzimos um pais e um povo à simples matéria prima, da qual esperamos os recursos que garantam uma copa do mundo.

Por todos os lados o futebol é dominado e controlado. Por todos os lados reina o futebol-indústria, o futebol-negócio. Em lugar algum, o futebol-futebol, o simplesmente futebol.

Longe do olhar de todos, o futebol cora, incompreendido, envergonhado de tudo e gritando por liberdade. Obrigam-no a se comportar como velho ranzinza e jogam sob seus ombros – de criança – a responsabilidade de suportar o mundo. O futebol vive num hoje onde o futebol é uma ordem. Quando transformamos o futebol em algo sério, roubamos dele a coisa básica que sustenta sua existência: a liberdade. Pois não é só o homem que respira liberdade. Também o futebol deseja ser só e apenas futebol. Também o futebol quer ser livre.

Será possível imaginar um futuro onde o futebol seja mais livre, um futuro onde exista um futebol mais futebolístico? A pergunta é grave. Pois, hoje, vigora uma crescente indiferença do homem em relação ao que há de essencial no futebol e no esporte como um todo. Ainda não sentimos isso na pele porque, se nós nos tornamos indiferentes a eles, eles ainda não se tornaram indiferentes a nós. E se um dia se tornarem? Haverá volta?

A resposta – se é que isso existe – à pergunta reside na reflexão em torno de uma outra pergunta, que é ainda mais grave e urgente.

Será possível e razoável imaginar um futuro onde o homem seja mais livre?

O esportista é um fingidor

Por Marcos Nobre

O esportista é um fingidor.

O ator de cinema não representa para um público, mas diante de um aparelho. Desempenhar bem significa passar por um teste extremamente exigente. No fundo, o que está em jogo é conseguir manter a dignidade humana diante de uma máquina.

Essa é uma das muitas sacadas do pensador Walter Benjamin, morto em 1940. Que acrescentou: "O interesse nesse desempenho é imenso. Porque é diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho".

O cinema é a vingança noturna contra o dia de trabalho, em que máquinas dominam quem as opera. Difícil saber se a compensação do filme leva à transformação do mundo ou ao conformismo. Ou, o que parece mais plausível, às duas coisas ao mesmo tempo.

Mas é fato que a cultura do teste se espalhou por todos os domínios da vida, da política ao mundo da moda, da música ao esporte. Hoje, tem o formato de uma cultura da celebridade. Com a televisão, a democracia de massas passou a selecionar pessoas capazes de desempenhar diante da câmera, por exemplo. É um movimento que pasteuriza os conflitos e bloqueia o acesso da grande maioria das pessoas à esfera pública e à política.

Já a internet trouxe um contramovimento interessante. Vídeos tecnicamente elementares atraem milhões de espectadores na rede. Vale cantar fora dos padrões, dançar e representar como for possível, lançar filmes caseiros. Não teve o efeito de libertar por inteiro a sociabilidade da lógica do desempenho. Mas mostrou que o teste pode ter outro sentido que apenas o de excluir.

Walter Benjamin dizia que a cultura do teste mecanizado não se aplicava ao esporte, onde os limites são, por assim dizer, naturais, onde o adversário não é a máquina. Pode ser que mudasse de ideia ao assistir a uma Olimpíada, ou a uma Copa do Mundo nos dias de hoje.

A dor física dos esportistas é constante. O negócio bilionário do chamado "esporte de alto desempenho" exige literalmente sacrifício: são frequentes e esperadas fraturas, lesões, cirurgias. E o desempenho não é apenas físico e psicológico; exige ainda o desempenho diante da câmera. A mensagem é a de que uma disciplinada submissão à técnica traz a vitória pessoal e coletiva. Não se trata de vencer a máquina, mas de lhe ser obediente em máximo grau. No esporte oficial, a rebeldia é hoje tratada como delinquência.

Sem saudosismos, falta agora inventar outros sentidos para o teste esportivo. Para que possa ser outra coisa do que o produto pasteurizado de um sofrimento muito real.