quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O trono da morte

Neste post, segue uma reflexão em torno do casamento e da mulher. O texto é um trecho do capítulo chamado 'O trono da morte', presente no livro Asas Partidas, de Khalil Gibran. O livro é imperdível.

O trono da morte, por Khalil Gibran.

O matrimônio em nossos dias é um comércio que faz rir e chorar, pois está nas mãos nos rapazes e nas mãos dos pais das moças. na maioria dos casos, os rapazes ganham. Os pais das moças perdem sempre. Quanto às moças, que passam de um lar para outro como móveis, sua vitalidade fenece e, como os móveis velhos, acabam sendo postas nos cantos das casas, vítimas da escuridão e de uma lenta destruição.

A civilização atual, ainda dominada pela ganância do homem, desenvolveu um pouco a percepção da mulher, mas aumentou muito suas dores. Ontem, a mulher era uma serva feliz; hoje, é uma senhora infeliz. Ontem, era uma cega que andava à luz do dia; hoje, tem visão, mas anda nas trevas da noite. Ontem, era bela na sua ignorância, virtuosa na sua ingenuidade, forte na sua fraqueza; hoje, tornou-se feia na sua sofisticação, superficial nos seus conhecimentos, distante do coração pelas suas pretensões. Virá um dia em que a mulher reunirá a beleza e o conhecimento, a arte e a virtude, a fraqueza do corpo e a força da alma?

Sou dos que dizem que a ascenção espiritual é uma das leis da humanidade, e a aproximação da perfeição, uma tendÊncia lenta, mas real. Se a mulher progrediu em certas coisas e regrediu em outras, é porque os obstáculos que nos impedem de atingir o cume incluem os antros dos saltimbancos e as covas dos lobos. Nesta nação que vive uma época similar à letargia que precede o despertar, nesta nação estranha pelas suas inclinações e aspirações, onde se amontoam o pó das gerações passadas e as sementes das gerações futuras, cada cidade possui uma mulher que simboliza a filha do amanhã. Selma Karame era em Beirute o símbolo da mulher oriental do amanhã. Mas, como muitos que vivem antes do seu tempo, foi vítima do seu tempo; e como uma flor que a correnteza do rio arrancou, foi levada apesar de si mesma pelo cortejo da vida para a infelicidade.

Mansur bei Galeb desposou Selma; e instalaram-se juntos numa casa luxuosa à beira do mar, em Ras Beiture, onde moram os homens mais ricos e inflientes. Fares Karame permaneceu naquela casa isolada, no meio dos parques e dos jardins, tal um pastor no meio de seu rebanho. E os dias de festa e as noites de alegria passaram, e a lua que os homens chamam de mel também se foi, seguida por luas de vinagre e fel, como as glórias das guerras deixam as caveiras nos campos longíncuos.

O esplendor dos casamentos orientais leva as almas dos jovens para além das núveus, como águias, e depois as lançam ao chão com a força da pedra de debulhar caindo no mar. Como pegadas impressas na areia da praia, as ondas logo o apagam.

A primavera se foi, e depois o verão. E chegou o outono. Meu amor por Selma evoluia da paixão de um jovem no amanhecer da vida por uma bela mulher, para aquela adoração muda que o pequeno órfão sente pela alma de sua mãe morando na eternidade. O afeto que dominava meu ser transformou-se numa melancolia cega que não vê mais o mundo, mas vê apenas a si mesma; e o amor que tirara lágrimas dos meus iolhos tornou-se idolatria que tirava gotas de sangue de meu coração; e o gemido de saudade que havia repercutido em mim tornou-se uma prece profunda que minha alma elevava no silêncio, pedindo felicidade para Selma, e contentamento para seu marido e paz para seu pai. Mas em vão sofria eu e solicitava e orava, porque a infelicidade de Selma era um mal que fazia parte da sua alma. Somente a morte podia curá-la.

Quanto a seu marido, era um desses homens que conseguem sem esforço tudo o que torna a vida confortável, mas nunca se safistazem e cobiçam sempre o que naõ lhes pertence, atormentados por sua ganância até o fim da vida.

(...)

Assim periclitam os povos entre os ladrões e os escroques, como os rebanhos são devastados pelas garras dos lobos e os facões dos açougueiros. Assim as nações orientais se submetem a líderes de almas tortuosas e caráter pernicioso, e acabam derrotadas. O destino passa, então, por cima delas e as esmaga sob seus pés como o martelo dos ferreiros esmagam vasos de argila.

Mas por que estou enchendo estas páginas com considerações sobre povos desgraçados e desesperados em vez de consagrá-las, como queria, a narrar a história de uma mulher infeliz e a descrever os sonhos de um coração ferido que o amor, mal o havendo tocado com suas alegrias, já o esbofeteava com suas dores... Por que as lágrimas enchem meus olhos à menção de povos decadentes e oprimidos, quando queria reservar minhas lágrimas para chorar a sorte de uma mulher frágil que a morte arrancou à vida no primeiro dia de primavera? Contudo, naõ é a mulher fraca o símbolo da nação oprimida? Não é a mulher, crucificada entre as aspiações de sua alma e as cadeias de seu corpo, similar à nação crucificada entre seus governantes e sacerdotes? Não são os sentimentos secretos que levam uma linda jovem às trevas do túmulo iguais às tempestades violentas que cobrem a vida dos povos com o pó da terra? A mulher é para a nação como a luz é para a lâmpada. Quando a luz da lâmpada está fraca, não é porque lhe falta o óleo?

Assim, quando o desespero enfraquece nossa visão, não mais vemos senão a sombra dos nossos temores. Assim, quando o desânimo ensurdece nossos ouvidos, não mais ouvimos senão as pulsações de nossos corações agitados.