quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Trabalhos, trabalhos, trabalhos...

Este blog ficou algum tempo sem receber textos, pois estive bastante ocupado com trabalhos do fim do periodo. Entre eles, um trabalho acerca da Intuição Intelectual em Hölderlin; as definições de phýsis no livro II da Física; e um texto enorme sobre o problema da guerra em Platão. Tentarei disponibilizar o texto para qualquer um que tenha o interesse em ler.

Durante os últimos três meses, só tem chovido aqui em Florianópolis. Raros são os dias em que o sol dá as caras. Mal posso esperar para voltar para Vitória.

A dissertação acerca do problema da guerra em Platão está a mil. Após apresentar uma comunicação, consegui ver qual é o perfil da dissertação. Ela já está "pronta". Só preciso sentar e começar o trabalho braçal.

Eu ainda não consegui pensar em um nome para esse blog. Eu sou horrível com nomes.

domingo, 12 de outubro de 2008

O imortal Cartola

Por ROBERTO VIEIRA

Há 100 anos nascia Cartola.

Mas não aquele cartola com letra minúscula, cartola de fraque e capital.

Há 100 anos nascia Cartola. Poeta. Nobre. Imortal.

Cartola que foi viver na Mangueira desde os tempos em que o Mangueira jogava futebol com os craques da fábrica de chapéus.

Mangueira que perdia por 24 x 0 do Botafogo, porque tudo no mundo acontece.

Vendo que o Mangueira era bom de samba e ruim com a bola no pé, Cartola aos 19 anos chamou os amigos e fundou a tradução musical do futebol brasileiro:

A Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.

Pois em cada drible de Paschoal Cinelli havia um acorde de Carlos Cachaça.

Na harmonia de Heitor dos Prazeres, um gol de Nilo e Nonô.

Como o mundo é um moinho, Cartola compunha suas canções enquanto enfrentava a fome e a solidão. Lavando carros.

Sorrindo ante a mocidade perdida.

Até que um dia apareceu uma rosa chamada Euzébia Silva do Nascimento. Ou melhor, Dona Zica.

Como a Dona Guiomar do Mestre Didi.

Alvorada em pleno inverno do seu tempo. Como um gol no último minuto de uma final de campeonato.

E na prorrogação de sua vida, Cartola virou o jogo nas cordas de aço.

Poeta idolatrado pelas novas gerações de sambistas.

Nobre senhor de rimas e versos de outrora.

Imortal, pois só Cartola entendeu a linguagem das rosas...

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A guerra

A pesquisa que ando desenvolvendo gira em torno da guerra. Quero explicar um dos motivos que me faz estudar isto com afinco: quero descobrir porque o Ocidente, antes de todas as outras culturas, transformou a guerra de extermínio no elemento central de sua cultura. Nenhuma outra cultura, a não ser o ocidente, poderia ter colocado todas as suas forças a serviço da arte de matar como, por exemplo, fizeram os europeus em Verdun, palco de uma terrível batalha durante a primeira guerra mundial: uma abordagem industrial sustentada da matança pior que qualquer massacre tribal. Nenhuma tribo indígena americana ou zulu poderia comandar, suprir, armar, matar e substituir centenas de milhares de homens durante meses a fio em nome de causas políticas abstratas. O mais famoso dos índios, temido por comer o coração de seus adversários para tomar-lhe a força, teria voltado para casa depois da primeira hora em Gettysburg, na guerra civil americana.

Um dos motivos dessa letalidade, penso eu, está no fato da guerra ocidental não ser perturbada por rituais, tradições, religiões ou ética, mas apenas pela necessidade militar. Em suma, o que me interessa nessa pesquisa é descobrir porque o ocidente viu na guerra um método para fazer o que sua política não consegue, estando dispostos a destruir, ao invés de impedir ou humilhar, quem quer que esteja em seu caminho. Dou de cara com umas coisas enquanto pesquiso e fico angustiado. Mesmo quem conseguiu escapar de tiros e granadas teve a sua vida totalmente destruída pelos fantasmas da guerra.

Bem, segue o texto que serviu de molde para uma apresentação sobre Nietzsche que fiz, há algum tempo, para o grupo PET de psicologia na UFES. A apresentação foi chamada de Ciência e Política no pensamento de Nietzsche. Isso é apenas um molde, não é um texto completo e detalhado.

Aforismo n. 373 da Gaia Ciência, Ciência como preconceito: “Que a única interpretação justificável do mundo seja aquela em que vocês são justificados, na qual se pode pesquisar e continuar trabalhando cientificamente no seu sentido, uma tal que permite contar, calcular, pesar, ver, pegar e não mais que isso, é uma crueza e uma ingenuidade, dado que não seja doença mental, idiotismo”. Crueza e ingenuidade porque tal movimento se dá a partir de uma cristalização numa perspectiva dada, onde, assim, o que se procura é assegurar o conhecimento já possuído, procurando estabelecê-lo como o único meio a partir do qual se deve ler o real. Para Nietzsche, tal movimento se funda num erro: o de pensar que existem verdades em si, que excluem totalmente a não-verdade, procurando estabelecer a perspectiva verdadeira hegemonicamente, não sendo aberta a outras. A sedimentação, estruturação e sistematização desse erro Nietzsche chama de “Conhecimento”, apontando para a Teoria do Conhecimento (Descartes). “Queremos de fato permitir que a existência nos seja de tal forma degradada a mero exercício de contador e ocupação doméstica de matemáticos? Acima de tudo, não devemos querer despojá-la de seu caráter polissêmico: é o bom gosto que requer, meus senhores, o gosto da reverência ante tudo o que vai além do seu horizonte”.

A ciência tende, assim, a unidimensionalizar a realidade, fazê-la aparecer sob uma perspectiva, uma dimensão. A compreensão unidimensional da realidade atinge a tudo, inclusive, o homem, e engloba toda a realidade. Esta 'cientifização' do real contaminou também a política, é o que parece nos dizer Nietzsche. A universalização dessas noções está no bojo da crítica que Nietzsche faz a política de seu tempo, que está enraizada em compreensões universais e vazias do que sejam as coisas. “A humanidade! Já existiu velha mais medonha, entre todas as velhas? Não, nós não amamos a humanidade; por outro lado, estamos longe de ser suficientemente “alemães”, como hoje é corrente a palavra “alemão”, para falar em prol do nacionalismo e do ódio racial, para poder nos regozijar do nacionalista envenenamento do sangue e sarna de coração, em virtude do qual cada povo da Europa de hoje se fecha e se tranca, como se estivessem todos de quarentena”. Se por um lado Nietzsche nega uma visão universal do homem, por outro, também rejeita ser um “alemão”, pois os nacionalismos que surgem são, para Nietzsche, um contra-movimento ao universalismo: os nacionalismos são movimentos onde os povos procuram se afirmar como A humanidade, como a via segura, plena e certa da humanidade. “Bem preferimos viver nas montanhas, à parte, 'extemporaneamente', em séculos passados ou vindouros, apenas a fim de nos poupar o mudo furor a que nos saberíamos condenados, como testemunhas de uma política que torna desolado o espírito alemão, ao torná-lo vão, e que é, além de tudo, política pequena: não necessita ela plantar sua própria criação entre dois ódios mortais, para que esta não se desfaça imediatamente? Não tem ela de querer a perpetuação dos pequenininhos Estados europeus?”. Segundo Nietzsche, à medida que os povos Europeus buscam afirmar-se enquanto a humanidade, não enquanto eles mesmos, cria-se ai um ambiente perfeito para gestar a criação da “política pequena”, que é a própria criação da vontade de verdade: de uma tranquilidade que permita ao homem furtar-se de ter de vir a ser o que ele é. A política pequena, assim, é o reino da subjetividade humana, o lugar onde se decide a perpetuação do que é velho e doente, onde se preza pela tranquilidade. Esse periodo, para Nietzsche, é a “era clássica da guerra, da guerra instruída e ao mesmo tempo popular na maior escala (dos meios, dos talentos, da disciplina)”.

À guisa de conclusão, tentarei acenar para o que Nietzsche chama de “Grande Política”. A Grande Política pode ser compreendida como a política dos sem-patria. O próprio Nietzsche considera-se um sem-patria, pois sente-se um completo estranho no lugar onde vive: “Não 'conservamos' nada, tampouco queremos voltar a algum passado, não somos em absoluto 'liberais', não trabalhamos para o 'progresso' (...)”. Nietzsche não concebe a habitação do homem, sua pátria, como sendo determinada biologicamente, como o pertencimento a uma raça, ou nacionalmente, como o pertencimento a um tipo de nacionalismo. O sem-pátria, para Nietzsche, é aquele que sempre e a cada vez precisa conqusitar a sua casa, a sua pátria, o seu lugar. E isso se dá porque tal lugar é algo que sempre se perde. Um fragmento de Heráclito, pensador que Nietzsche admira, pode nos ajudar a esclarecer: “A morada do homem, o extraordinário” (frag. 119). A morada do homem – onde ele sempre está, o local que lhe é mais ordinário, comum – é o extraordinário. Com o extraordinário, porém, não se pode lidar ordinariamente – não se pode lidar buscando a tranquilidade, segurança, previsibilidade, mas torna-se necessária uma lida extraordinária com o extraordinário – uma lida que procure originariamente (no sentido de haurir da origem, não de compreensões derivadas dela), sempre e a cada vez, ser o que ele mesmo é. A Grande Política, assim, não se esgota nunca em um sistema político, mas sim a forma como podemos pensar a via pela qual o homem estabelece os seus lugares no mundo. A Grande Política gira em torno do tornar-se familiar com o mundo, no sentido de transformá-lo em sua morada.

Saint Exupéry

"Jean-Marie Conty falará, aqui, sobre os pilotos de testes. Conty é politécnico e acredita nas equações. Ele tem razão. As equações engarrafam a experiência. Mas é raro, afinal de contas, no campo da prática, que nasça da análise matemática a máquina, como o pinto nasce do ovo. A análise matemática precece, às vezes, a experiência. Mas, muitas vezes, contenta-se por codificá-la, o que, aliás, é um papel essencial. Medidas grosseiras demonstram ue as variações de tal fenômeno estão perfeitamente figuradas por um ramo de hipérboles. O teórico, portanto, codifica essas medidas experimentas pela equação da hipérbole. Mas demonstra, também, por grandes esforços de análise, que não poderia ser de outra forma. Quando medidas mais rigorosas lhe permitirem aperfeiçoar sua curva, que doravamente se parece muito mais a uma curva de uma fórmula completamente diferente, ele codifacará o fenômeno com mais vigor, por esta nova equação. Mas demonstrará, por esforços não menores, o que era previsível, desde sempre.

O teórico crê na lógica. Acredita desprezar o sonho, a intuição e a poesia. Não vê que elas se disfarçam, essas três fadas, para o seduzir como um apaixonado de 15 anos. Não sabe que lhes deve seus mais belos achados. Elas se apresentam sob o nome de "hipóteses de trabalho", de "condições arbitrárias", de "analogia"; como poderia o teórico suspeitar que enganava a lógica austera e que, ao escutá-las, escutava o canto das musas... ?

Jean-Marie Conty contará a bela existência dos pilotos de teste. Mas ele foi politécnico. E afirmará que logo o piloto de testes não será mais, para o engenheiro, que um instrumento de medida. E eu por certo acredito nisso, como ele. Acredito, também, que vira o dia em que, sofrendo sem saber por que, nos entregaremos a uns físicos que, sem sequer nos interrogar, nos tirarão uma amostre de sangue da qual deduzirão algumas constantes a serem logo multiplicadas, umas pelas outras. Depois do que, consultando uma tábua de logaritmos, nos curarão com uma pílula. E, no entanto, quando eu sofrer, irei provisoriamente a um velho médico do interior, que me observará do canto do olho, baterá na minha barriga, colará contra meus ombros um velho lenço, através do qual escutará. Depois, tossirá um pouco, acenderá o cachimbo, esfregará o queixo e me sorrirá para melhor curar.

Ainda acredito em Coupet, Lasne ou Détroyat, para quem o avião não é somente uma coleção de parâmetros, mas um organismo que ausculta. Eles aterrissam. Discretamente, rodeiam o aparelho. Com a ponta dos dedos, acariciam a fuselagem, batem levemente na asa. Não calculam, meditam. Depois, dirigem-se ao engenheiro e, simplesmente: "Ai está... é necessário encurtar a asa".

Admiro a Ciência, é verdade. Mas admito também a Sabedoria.

A. de Saint Exupéry"

Thich Quang Duc

Thich Quang Duc, vietnamita e monge budista, ficou famoso por ter ateado fogo no próprio corpo durante a guerra do Vietnã. Testemunhas dizem que ele permaneceu imóvel e em silêncio enquanto as chamas consumiam o seu corpo. Dizem as línguas que ele fez isso para protestar... gostaria de falar um pouco sobre isso.

Derek Bishop, num site, diz que a ação do monge foi errada. "I wish to underscore that what Thich Quang Duc did was wrong", 'Gostaria de sublinhar que o que Thich Quang Duc fez é errado'. Bishop ainda faz uma crítica ao budismo e a várias outras experiências místicas humanas, acusando-as de criarem um âmbito fora do mundo que é tomado como ideal, fazendo com que o homem esqueça de cuidar das 'coisas terrenas'. Por fim, Bishop diz que a ação do monge e o discurso búdico sobre o fogo não são sinais de um pensamento holístico, integrador e emancipatório. Em suma, Derek parece repetir a crítica nietzscheana ao cristianismo e a toda forma de além-mundo.

Eu não conheço o budismo. Então, na minha qualidade de desconhecedor do budismo, gostaria de dizer que Derek Bishop também desconhece budismo. Além disso, parece ignorar que uma guerra terrível, mais terrível do que nós podemos imaginar, aconteceu lá. É uma situação parecida a que Saint Exúpery vivenciou, a ponto de fazê-lo admitir: "Odeio este planeta", "Odeio a minha época com todas as minhas forças", "tenho a impressão de estar caminhando para os tempos mais negros do mundo". Saint Exúpery disse isso acerca da segunda guerra mundial. Algumas décadas depois, eclodiu a guerra do Vietnã. Pasmem: um dia de operação nesta guerra superou (em termos de energia, de poder utilizado) quase a totalidade da segunda guerra mundial, de acordo com alguns estudos. Mas Exúpery ainda teve alguma sorte: encontrou alguma paz no deserto do Saara, onde pode escrever Homens da Terra e experimentar o que é um mundo cheio de sentido e coisas belas. Exúpery chega a admitir que os desertos não estão onde pensamos: o Saara, para ele, era muito mais vivo que Paris.

Thich Quang Duc vivenciava um momento complicado: os monges budistas eram perseguidos por soldados sob a acusação de acolherem 'criminosos', templos eram cercados... enfim, o que ele considerava o maior tesouro do Vietnã, o budismo, estava sendo esquecido. Se nos colocarmos nessa situação, podemos ser tomados por uma tristeza sem medida, por uma depressão avassaladora e uma total descrença no mundo onde vivemos. A distância e a segurança de nossas casas nos impede de conhecer esse tipo de desespero. Quero atentar aqui para a palavra, des-espero, é o estado de espírito que se instaura quando toda espera (toda esperança) se revela vã. Quando não se abre mais nenhuma possibilidade de que as coisas sejam diferentes. Nessas horas, vale tudo: quem seria capaz de, num momento desses, respeitar o poderoso 'Não matarás'?

É verdade que, visto sob um ponto de vista prático, a ação de Thich repercutiu no mundo inteiro, e levou as pessoas a refletirem acerca da guerra. Mas, penso eu, não é este o sentido da ação do monge. Há um outro sentido na ação de Thich que considero vital. Como já disse antes, Thich viveu num periodo complicado. Certamente, sentiu e viu coisas que o fizeram questionar tudo. Subitamente, todo o mundo perdeu o sentido. O que antes era um cosmos organizado, transformou-se em caos, e sem a perspectiva. Muitos não suportam este tipo de desespero - ele é para poucos. Thich estaria sendo coerente com tudo o que aconteceu e com tudo o que imaginamos que se passou com ele se pegasse em armas e expulsasse, com tiros e violência, os estrangeiros. Mas, o monge ateou fogo no próprio corpo. Por quê?

Thich procurou ser o próprio Buda, em certo sentido. Ele buscou a redenção, procurou purificar o desespero que deve ter lhe abatido para recuperar uma certa virgindade, inocência. Sua ação foi ainda mais radical que o "oferecer a outra face" cristão. Para ele, aquele mundo não fazia sentido. Podemos aqui lembrar de Rainer Maria Rilke: o verdadeiro poeta não necessita de 'coisas bonitas'. Ele é poeta até mesmo trancado em um quarto escuro. Penso que, tomado pelo desespero da guerra, Thich sentiu vergonha de si, pois o mundo não fazia mais sentido, não havia mais beleza, não havia mais um por quê. Thich acreditou na humanidade e ateou fogo em si: era ele quem precisava ser purificado, e não a humanidade. Acredito este ser o sentido da purificação. Purificar os desejos não significa punir o corpo e ascender ao céu. Thich sentiu-se como um poeta trancado em um quarto escuro e sem acesso a qualquer tipo de inspiração. Então, transformou seu próprio corpo em inspiração.

Não acho que posso dizer se a ação dele é certa ou errada. Penso que são em momentos terríveis assim que descobrimos quem realmente somos. Thich Quang Duc não desistiu de sua humanidade. Ele não suportou a idéia de ser alguém mesquinho e baixo, e optou por purificar tal idéia com o fogo.

O site onde Bishop fala é este (correção: o site saiu do ar, infelizmente).

Du Fu

Segue abaixo uma tradução que fiz, há muito tempo, para um poema de Du Fu. Vale lembrar, toda uma tradução é sempre uma traição - as duas palavras possuem uma mesma raiz etimológica. Consultou-se o texto no chinês, com o auxílio de um bom dicionário, e uma versão em inglês do poema.

Canção das carroças

"As carroças ribombam e afluem, os cavalos relincham furiosos,
os soldados marcham com arcos e flechas em seus cintos.
Parentes, esposas e crianças correm para vê-los partir,
A fumaça que eles levantam esconde até a ponte Xianyang.
Eles vestem suas roupas e fazem seu caminho, barrando o choro,
mas este atinge diretamente as núvens do céu.
Um transeunte pergunta "Por quê?" a um soldado,
e ele responde que este recrutamento acontece com freqüência.
"Aos quinze, vários foram enviados para o norte para proteger o rio,
então aos quarenta são enviados até os campos do oeste.
Quando nós fomos para longe, os ancestrais olharam por nossas cabeças,
retornando com as cabeças brancas, fomos enviados para a fronteira.
Lá, não é água que corre no rio, mas sangue,
pois não há limites nas guerras e ambições do imperador.
Não percebe que, nos distritos ao leste das montanhas,
nascem árvores com espinhos nos mil vilarejos?
Mesmo que hajam mulheres fortes para agarrar a enxada, ir para o arado
e colher, não há ordem no campo.
Além disso, nós, soldados de Qin, lutamos a pior das lutas,
sempre sendo conduzidos como se fôssemos cachorros ou galinhas.
Um senhor pode me perguntar isso,
mas e um soldado? Pode se atrever a reclamar?
Mesmo nesse tempo de inverno,
soldados do oeste não param de passar.
O magistrado está ávido por impostos,
mas como podemos pagar?
Agora, ter garotos é ruim,
enquanto ter garotas é o melhor;
pois as garotas podem ser casadas com os outros,
enquanto os garotos são enterrados junto à grama.
Você não viu a fronteira de Qinghai,
os esqueletos dos homens que ali se juntavam?
Os novos fantasmas estão furiosos com a injustiça, os velhos fantasmas choram,
e uma chuva escura do céu negro caí nas vozes que urram"

sábado, 27 de setembro de 2008

A guerra na antiguidade

Não tenho alimentado este cachorro aqui direito.

Mas, tenho minhas razões: encontrava-se escrevendo algo mais importante, a saber, a minha dissertação de mestrado.

É, aquela mesma que eu disse que iria dividir com os poucos leitores deste canal.

A dissertação já tem vinte e duas páginas.

Neste post, algumas citações que estão presentes no texto, todas conectadas com o tema da guerra.

"Doce é, pois, a guerra para os inexperientes, mas se assombram singularmente os experientes com sua presença" - Píndaro, frag. 110b.

"Assim numerosos e difíceis (males) tombaram sobre a cidade em consonância com a stásis, que ocorre e sempre ocorrerá enquanto for a mesma a natureza dos homens, também mais tranqüila e diferente em suas formas, conforme cada uma das mudanças das conjunturas sobrevier. Pois na paz e prosperidade, as cidades e os indivíduos têm pensamentos melhores por não caírem em necessidades inevitáveis; a guerra, que suprime as facilidades da cada dia, é um mestre violento e adapta as paixões da maioria de acordo com o momento" - Tucídides, 3.82.2.1

"A morte então se alastrou de todas as formas (idea) possíveis; e, como geralmente acontece em tempos assim, não havia nenhum alcance a qual a violência não podia alcançar" - Tucidides, 3.81.5

Este cachorro mal educado não permitiu que eu escrevesse o texto grego junto. Em outra oportunidade, arrumo um jeito de por os originais aqui.

Em breve, publico o texto inteiro.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O fim & A prece

"Estão sendo organizados em todos os lugares.

E é a responsabilidade dos oficiais do exército.

Cada cidadão responsável deve ter coragem e calma... ajudando o exército a manter... a calma, a ordem e a disciplina.

Nosso pior inimigo agora é o pânico.

É contagioso e não deixa o bom senso prevalecer.

Ordem e organização. Nada mais, meus cidadãos.

Manter a ordem. Ordem... contra todo esse caos.

Eu imploro, humildemente, para serem corajosos... e manterem o espírito do bom senso.

Infelizmente, também em nosso país... há uma base com quatro ogivas e, provavelmente... estas ogivas serão bastante trágicas...

Será usado contra nós.

A comunicação pode ser interrompida a qualquer momento... mas, já falei o mais importante... meus concidadãos.

Todos devem permanecer em seus lugares.

Não há nenhum lugar seguro na Europa.

Desta maneira estamos todos... forçados a permanecermos na mesma situação.

Todos os distritos estão sob controle militar"

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"Pai nosso que estais no céu... santificado seja o vosso nome.

Venha a nós o Vosso reino e seja feita a Vossa vontade... assim na Terra como no Céu.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje... e perdoai as nossas ofensas assim como nós... perdoamos a quem nos ofendeu.

Não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

Oh, Deus! Nos salve neste terrível momento.

Não deixe suas crianças morrerem... nem os meus amigos, minha esposa...

Victor, todos que amam a Vós, todos que em Vós acreditam... todos que em Vós não acreditam porque são cegos... todos que, simplesmente, não vos deram atenção... porque até hoje nunca sofreram.

Todos que, neste momento, perderam suas esperanças, seus futuros... suas vidas e a possibilidade de seguir Vossos pensamentos.

Aqueles apavorados, sentindo o fim chegar... sentindo o pavor, não por si, mas pelo próximo.

Para aqueles que não têm ninguém... além de Vós para proteger... porque esta guerra é a última... uma guerra horrível.

E após, não haverá vitoriosos e nem perdedores... nem cidades e nem vilarejos... nem pasto e nem árvores, nem água nos poços, nem pássaros no céu.

Darei-te tudo que tenho, abandonarei a minha família que amo.

Destruirei minha casa...

Desistirei do meu filho.

Ficarei mudo, nunca mais falarei com ninguém.

Eu desistirei de tudo que me une com a vida... se Vós fizerdes tudo voltar como era antes... como era nesta manhã, como era ontem.

E livrai-me desse mortífero, nojento e animalesco pavor.

Sim, disso tudo!

Deus! Ajudai-me!

Farei tudo que prometi!"


Offret

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Herói. Morto. Nós

por Lourenço Diaféria

(nota do blogueiro: Lourenço Diaféria foi um grande cronista sobre a vida em São Paulo. Ele faleceu hoje, 17 de setembro de 2008. Nos conta Juca Kfouri que, por causa desta crônica, Lourenço foi preso, acusado de ser comunista. Esta crônica foi publicada originalmente em 1° de setembro de 1977, na Folha de São Paulo)

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

A obra

Acordara.

Na verdade, não havia conseguido dormir.

Os pensamentos se faziam e desfaziam nele, como ondas a se formar e quebrar.

A companhia de tais pensamentos era agradável.

Não o era para o sono, mas para todo o resto.

Havia visto algo que o forçara a ficar de olhos abertos. E, apesar de onipotente, nem ele consegue dormir de olhos abertos.

Mesmo que quisesse fechar os olhos, não poderia. Pois eles já estavam completamente entregues à visão.

Paradoxalmente, não se sentia obrigado a ver. Ao contrário, era prazeroso.

Prazeroso o suficiente para fazê-lo levantar da cama e vestir uma muda de roupas velhas, suas favoritas.

Vestido, acendeu sua vela favorita. O ambiente ficou perfeito, pois a vela lhe trouxe suas inseparáveis amigas, luz e sombras.

Com passos preguiçosos, dirigiu-se a cozinha, para encher uma taça com o seu vinho favorito.

Uma vez acompanhado e munido de seus preciosos instrumentos, sentou-se à mesa.

Espalhados na mesa, vários papéis amassados. Esteve perturbado nas últimas noites.

Pois queria impor as letras ao papel, que, sabiamente, rejeitou-as.

"A obra não espera pelo lazer do artista, mas força é que o artista acompanhe o seu trabalho, sem ser à maneira de um passatempo", disse o papel.

Foi quando Ele entendeu porque esteve perturbado.

Os últimos seis dias o deixaram um pouco rabugento.

Tanto que tentou impor as letras ao papel.

A lixeira próxima à mesa estava cheio de imposições fracassadas.

Mas isso não o incomodava. Ninguém é perfeito.

Ele sorveu o vinho e coçou carinhosamente o queixo.

Milagrosamente, o pensamento se articulou.

A ocasião propícia apareceu.

Tudo começou a fazer sentido.

A velha máquina de escrever sorriu.

Foi quando Ele escreveu o mundo...

O golpe e o gol

Por Roberto Vieira

A Bolívia nos recorda de cinco em cinco minutos:

A América do Sul é uma imensa casa dos espíritos.

Há 35 anos, o espírito de Salvador Allende sobrevoa o Estádio Nacional do Chile.

Há 35 anos, Allende foi assassinado no La Moneda.

Há 35 anos, a seleção chilena foi a campo vencer o nada. Marcar um gol no estádio do terror.

A América do Sul é uma imensa casa dos espíritos.

Passarela erguia a Copa do Mundo?

Jovens morriam nos cárceres de Videla.

Pelé driblava Mazurkiewicz?

Médici exultava nos braços do povo.

Cubillas assombrava os búlgaros?

Velasco Alvarado censurava Vargas Llosa.

O futebol ocultava os porões do terror.

Tudo traduzido nas veias abertas por Eduardo Galeano.

Escritor, exilado e apaixonado por futebol.

Ou quem sabe, no Manual do Idiota Latino Americano?

Fica ao critério de cada um.

Quem imagina a casa dos espíritos sul americana um jogo de um time só, engano.

É um jogo que sempre termina 0 x 0.

O regime que o argentino, dublê de goleiro e torcedor do Rosário Central Che Guevara desejava instalar nas selvas de Evo Morales passava longe da democracia.

(Che que era fã de Di Stéfano e pediu autógrafo ao seu ídolo no restaurante La Saeta Rubia em Bogotá)

A guerrilha brasileira lutava por liberdade. Para instaurar uma ditadura.

O ouro da CIA era igual ao ouro de Moscou.

Os cem anos de solidão de García Márques não enxergavam o outono do patriarca jogando baseball.

O continente dos maiores jogadores de futebol do planeta permanece uma grande Liga Pirata.

Uma gigantesca casa dos espíritos.

A terra do golpe e do gol...

domingo, 14 de setembro de 2008

Presente feito de caos e música

Ganhei vários presentes nesse aniversário - e olhe que não sou do tipo de ganha presentes o tempo inteiro. Os distantes ligaram p/ mim. O pessoal da casa fez lasanha e bolo que rendeu o almoço e a janta. Tínhamos apenas uma vela (com o número 4), ou seja, eu regredi vinte anos e celebrei novamente os meus quatro anos.

Mas um presente que eu ganhei é digno de nota. Pois ele é feito de caos e música.

ESTRANHEZA

Louco? Talvez
Ouvi isso mais de uma vez
Suas palavras incomodam
A todos aqueles que se acomodam
Por ser a estranheza

Tolo? Jamais!
O que fala tem brilho
Não se esqueça mais
Deste seu poder
Poder de fazer
Um completo descarrilho
Por ser a estranheza

Não me preocupo, inicialmente
Em enquadrar seus dizeres
E nem criticar os seus fazeres
Pois o que acho, realmente
É que essa quase realeza
É um dos maiores prazeres
Pois nos tira a certeza
De estranhar a estranheza

Mais estranho seria
Se este ser peculiar
Com seu amor pela sabedoria
Deixasse de filosofar

Isso sim, seria a completa estranheza.

sábado, 13 de setembro de 2008

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade é um grande poeta. Para mim, o fato de vários dos seus poemas terem sido escritos sob o impacto aterrorizante da segunda guerra mundial o torna ainda mais interessante. Assim sendo, seguem abaixo alguns poemas do Drummond que eu aprecio.

O primeiro poema é um tanto niilista. Diria até que condensa bastante da experiência nietzscheana do niilismo, onde as coisas perdem o seu peso. O segundo poema é bastante angustiante, pois se refere ao artefato que, acreditava-se na época (e ainda se acredita), podia varrer a vida da face do planeta. O poema da purificação é uma espécie de poema pós-guerra. A angústia faz-se presente quando Drummond pergunta "Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror?". Já o último poema revela uma condição essencial e muito presente no periodo de guerra: a ausência. Ela pode se manifestar de vários modos: uma distância muito distante, a morte...

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


A bomba

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos
interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,
de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,
cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos
de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger
velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação
em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.

Poema da purificação

Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As água ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.

Acordar, viver


Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,

enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

É possível?

Estou aqui sentado no meu pequeno quarto, eu, Brigge, tenho vinte e oito anos e de quem ninguém sabe. Estou aqui sentado e não sou nada. E no entanto este nada começa a pensar, e, num quinto andar, por uma tarde pardacenta de Paris, pensa este pensamento:

É possível, pensa este nada, que se não tenha ainda visto, reconhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milênios para observar, refletir e anotar e que se tenha deixado passar os milênios como recreio da escola em que se come o pão com manteiga e uma maça?

Sim, é possível.

É possível que, a despeito de invenções e progressos, a despeito da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado à superfície da Vida? É possível que se tenha recoberto mesmo esta superfície - que no fim e ao cabo seria ainda alguma coisa - com uma substância incrivelmente enfadonha, que a torna parecida com móveis de salão durante férias de Verão?

Sim, é possível.

É possível que toda a história do universo tenha sido mal compreendida? É possível que o passado seja falso porque se falou sempre de suas multidões como se se contasse de um ajuntamento de muitos homens, em vez de falar daquele em torno do qual elas se reuniam, porque era estrangeiro e morreu?

Sim, é possível.

É possível que julgasse ser preciso recuperar o que aconteceu antes de ter nascido? É possível que fosse perciso recordar a cada um que nasceu dos anteriores, que o sabia portanto e não devia tar ouvidos a outros que pretendiam saber coisa diferente?

Sim, é possível.

É possível que todos estes homens conheçam com toda a exatidão um passado que nunca existiu? É possível que todas as realidades nada sejam para eles; que a sua vida decorra sem estar ligada a anada, como um relogio num quarto vazio - ?

Sim, é possível.

É possível que se não saiba nada das raparigas que no entanto vivem? É possível que se diga "as mulheres", "as crianças", "os rapazes" e não se perssinta (a despeito de toda a cultura se não pressinta) que todas estas palavras já há muito tempo que não têm plural, mas apenas inúmeros singulares?

Sim, é possível.

É possível que haja pessoas que digam "Deus" e suponham que isso é algo de comum? - E vê estes dois meninos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho copra outro igualzinho no mesmo dia. E mostram um ao outro os canivetes passada uma semana, e vê-se então que eles só muito de longe se parecem, - tão diferentemente eles se desenvolveram em mãos diferentes (ora, diz a mãe de um deles: se vós pondes logo tudo a servir e tudo gastais... -). Ah, é verdade: é possível acredtar que se possa ter um Deus sem o usar?

Sim, é possível.

Mas se tudo isso é possível, se tem mesmo uma só ligeira aparência de possibilidade, - então, por quem sois!, é preciso fazer qualquer coisa! O primeiro quidam que teve esse pensamento inquietante, tem de começar a fazer qualquer coisa do que se descuidou; mesmo que seja um qualquer, sem ser o mais apropriado: pois se não há outro... Este jovem, esse estrangeiro sem importância, esse Brigge, terá de sentar no seu quinto andar e escrever, dia e noite: sim, terá de escrever, e isso será o fim.

Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

CONTO DE NATAL

Por Roberto Vieira

(Nota do blogueiro: Todo mundo já jogou futebol quando era pirralho... é verdade, não é natal, mas e daí?)


Quando eu era pequeno e jogava bola no colégio, sempre existia um muro.

Alto e com um cachorro brabo do outro lado.

E a bola, invariavelmente caía do outro lado. No melhor do jogo.

Azar.

O cachorro tinha um dono. Bernardo. Torcedor do Sport. A gente sabia pela imensa bandeira rubro-negra na janela do casarão.

E Bernardo não devolvia a bola, nunca.

A gente também nunca viu o Bernardo. Ele nunca dava as caras. Rico e orgulhoso.

O jogo parava e a gente tinha de esperar até alguém conseguir uma outra bola.

Porque bola era luxo. Se ganhava no aniversário. Por vezes no Natal. E só.

Mas sempre aparecia alguma bola dias depois. Vinda não sei de onde. Quem sabe de outros muros?

O jogo recomeçava. Todo mundo morrendo de medo de chutar mais forte.

Até que dias depois, pimba! A bola era chutada por algum perna-de-pau e ia parar no quintal de Bernardo.

O cachorro gritava. E todo mundo, com medo, ficava esperando o futuro.

Mesmo assim, a infância era feliz. Tinha bola de gude, que nunca caía na casa de Bernardo.

Tinha pipa. Tinha polícia e ladrão. Tinha Fratelli Vita.

Os anos se passaram e o mundo mudou.

Mas sempre que a velha turma se encontrava, lembrava das bolas e do muro. Do cachorro. De Bernardo.

Foi então que ano passado, tive uma surpresa.

Fui visitar o velho colégio. Colégio que vai deixar de ser colégio. Vai virar shopping center.

Uma das irmãs de caridade me reconheceu. Sempre passo por lá no Natal. Estava triste com o fim da escola.

De repente, comentou:

- O antigo casarão também vai virar shopping center! Vão derruba-lo depois do Natal.

Pensei em Bernardo. Na certa iria lucrar uma barbaridade com a venda do imóvel.

Antes que eu pudesse completar meu raciocínio, a irmã apontou um homem sentado no jardim:

- Lembra dele? Era o menino que morava no casarão.

Lá estava Bernardo. Olhando para o jardim, o campinho de terra, a velha quadra de basquete.

Bernardo estava sentado em uma cadeira de rodas.

Não pude deixar de caminhar até ele. Apresentei-me. Eu era o velho menino que chutava as bolas para seu quintal.

Surpreso, Bernardo olhou para mim. Lembrava das bolas.

Perguntei pelo cachorro. Ele disse que Manga, esse o nome do cachorro, havia morrido há muito tempo.

Sorrindo, Bernardo me contou que lembrava das bolas que iam cair no seu quintal.

De como ele sofria ouvindo nosso gritos de gol. Ele que não podia jogar.

Manga ficava muito zangado quando a gente jogava. Ele sofria vendo o seu dono sofrendo. Por isso gritava tanto.

Sua mãe nunca devolvia as bolas. Imaginava que aquele barulho trazia sofrimento ao filho.

Fiquei mudo.

Até que Bernardo, percebendo meu silêncio, murmurou:

- Na verdade eu gostava quando tinha jogo. Você não imagina nas férias, quando o silêncio era completo. E naquela época nem o Sport me dava alegria...

Verdade. Foram os anos do Hexa do Náutico. Do Penta do Santa Cruz.

Despedi-me. Deixei meu telefone com ele. Saí pensativo pelas ruas do Recife.

Eu pensava nas bolas e nos muros. Nas distâncias que separam quintais.

Algo em mim nunca mais foi o mesmo.

Hoje, quando o Náutico perde. Quando o Sport vence. Lembro sempre de Bernardo e de outros meninos como ele.

E agradeço a vida e a Deus.

Deus que sabiamente fez o dia e a noite.

A vitória e a derrota.

Para que o sorriso e a lágrima jogassem bola nos dois lados do muro.

Zé da Lua

Vou postar aqui algumas pérolas raras que encontrei nesses tempos de Internet.

Não sei quem é o autor. Ele se entitula 'Zé da Lua'. O que ele escreveu não possui título, exceto um texto.

Viva a luta de crases!

O problema das crases é muito sério.
Toda uma questão semântica e estrutural na língua se perde sem o entendimento correto das crases.
As crases são úteis.
Vamos estudar o português e conhecer as maravilhas das crases!
As crases permitem uma maior exploração das vogais.
Principalmente da vogal a, de algaravia.
Sem a crase a tradicional burocracia discursiva perde seu sentido organizador de ligação concisa entre o artigo e o...
e o...
bom...
talvez as crases não sejam assim tão importantes.

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ele nasceu...
a besta interior...
o antismo declarado...
o minhoquismo sancionado...
o apocalipse se aproxima feérico...
a barbárie eterna se cristaliza olulante...
eles gritarão: o messias vive!
o tempo de pessimismo não chegou ao seu fim...
visões espectrais e sombrias impressas em alto relevo no mármore branco entronizado...
comeremos merda!,
gritam as prostitutas da sapiência...
não haverá nenhum jamais...
o lixo radioativo é a meta...
paranóia infinita...
na sincronicidade das consciências orfãns...
o estrondo inaudível...
o gosto pálido...
a carne em compotas de geléia...
a agulha invadindo o centro do olho...
torturas...
vazias...
torturas...

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a comida deve ser distribuída entre todas as pessoas de bem.
a comida é a salvação dos intestinos.
a comida sustenta a esperança de uma nação melhor.
a comida deve ser o caminho, a verdade e a luz.
a comida estimula a imaginação.
a comida é a poesia das massas enganadas.
a comida é o sorriso na aurora.
a comida é o ventre da pureza.
a comida enriquece o horizonte.
a comida satisfaz a fome do povo.
a comida retira a amargura do olhar entristecido.
a comida encanta e embala os sonhos do porvir.
a comida justifica nossa luta.
a comida não é uma propaganda política.
a comida será comprida.
a comida será um fato cotidiano.
a comida está além do café com leite.
a comida envolve os vegetais e os legumes.
a comida é o boi, a vaca, o peixe e a melancia.
a comida significa dignidade e respeito.
a comida move montanhas.
a comida restaura a fé nas instituições.
a comida deve ser patriótica.
a comida pode ser regional.
a comida é o gênio da raça.
a comida também é torcida.
a comida também é participação.
a comida também é orgia.
a comida representa a beatitude estomacal.
a comida renova os movimentos peristálticos e anais.
a comida emociona e converte.
a comida disciplina os sentidos do corpo.
a comida será infinita.

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o horror da guerra é incrível.
o horror da guerra é fantástico.
o horror da guerra é traiçoeiro.
o horror da guerra é catártico.
o horror da guerra é hipnótico.
o horror da guerra é sedutor.
quantos não ficaram horas e horas assistindo filmes sobre as guerras?
quantos não ficaram horas e horas assistindo noticiários sobre as guerras?
quantos não ficaram horas e horas lendo romances sobre as guerras?
quantos não ficaram horas e horas lendo reportagens sobre as guerras?
só os ingênuos e burros acreditam que a indústria bélica e a indústria cultural não são irmãs.
estamos consumidos pelas chamas do remorso porque lá no fundo reconheçemos que somos miseráveis assassinos.
mas dirão: eu nunca apertei o gatilho...

Post inaugural: Ser para a morte

Criei esse espaço inspirado no blog recém aberto de um amigo. Assim como eu, ele também não liga muito para blogs. Entretanto, mesmo assim ele abriu um blog. Por quê? Só ele pode efetivamente responder tal pergunta. No meu caso, abrir um blog vai ajudar a satisfazer algo que gosto muito de fazer - e acho que não sou o único que gosta. Quem é que não gosta de compartilhar com os outros as coisas que considera engraçadas, bonitas, enfim, as coisas que você simplesmente considera? Esse é o objetivo do blog: compartilhar textos e outras coisas com os poucos leitores que ele terá. Além disso, vez ou outra falarei aqui da dissertação que estou escrevendo sobre a experiência da guerra no pensamento antigo.

A criação deste blog foi um processo engraçado. Eu descobri lá pelas tantas que tinha que dar um nome p/ essa coisa. Nesse instante eu pensei na criatura que batizou a filha de "Talula Dança a Hula do Hawaii". Decidi que o blog teria um nome legal e simples. Comecei a procurar um. Philosophia? Não, ocupado. Pólemos? Não, ocupado. Uma a uma, as primeiras ideías que tive revelaram-se nomes que já estavam ocupados.

Foi então que pensei: "Preciso de um nome original, algo que só eu tenha pensado, algo que fará com que os outros lembrem de mim e me reconheçam". Foi então que surgiu a idéia perfeita: TUDO MENTIRA! Sim, é a idéia perfeita. Surgiu quando entrei no meio de uma discussão dizendo 'Tudo mentira'. Instantaneamente eu já me encontrava numa conversação, com uns realmente achando que eu fazia parte da conversa, enquanto outros riam horrores. Sim, o nome é ideal. E ninguém seria tão maluco ao ponto de pensar nisso... ... nome ocupado.

"Deuses, e agora?", eu pensei. Havia algum debilóide em algum lugar do mundo tão debilóide quanto eu. Fui dormir, iria pensar no maldito nome uma outra hora. Acordando no outro dia, fui estudar. É o texto de um pensador alemão que sustenta que o que faz o homem ser homem é o "Ser-para-morte". Segundo esse pensador, só o homem morre. Só o homem experimenta a morte como morte. O animal não morre, o animal acaba; o homem morre. Morrer não é acabar; morrer é experimentar a todo o tempo a possibilidade do fim. Por experimentar isso a todo o instante, o homem cuida da sua existência e faz coisas que possam, de algum jeito, eternizá-la. "Ser-para-morte". Nomezinho bacana. Quem sabe ele não seja o nome do blog? Mas, bah, isso é um conceito de um filósofo super conhecido. Certamente algum estudioso ou um outro maluco feito eu já deve ter pensado nisso... ... nome não ocupado.

Estranho, não? Um nome idiota, surgido num momento ímpar de idiotice e palhaçada, está ocupado, enquanto outro nome, muito mais simples, importante e universal, estava desocupado. Que coisa...

Cuido muito mal de cachorros, então não sei se isso vai em frente. Mas também não sei se isso não vai em frente, então...

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A Criança que Pensa em Fadas


A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

(Alberto Caeiro)