segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Em torno do teismo e do ateísmo

Certa vez, participei de uma twitcam que discutia alguns temas relacionados ao teismo e ao ateísmo. Como estudante de filosofia, adoro esse tipo de discussão. E as pessoas que assistiam e participavam da conversa - algumas se declaravam ateus, enquanto outras diziam crer em deus - eram educadas e inteligentes, o que permitiu o fluir da conversa. Por causa de minha formação, fizeram várias perguntas acerca do tema na filosofia, como sobre a famosa afirmação marxiana que diz que "a religião é o ópio do povo", ou mesmo para explanar brevemente o que Nietzsche quis dizer com "deus está morto". E eles conseguiram compreender que os dois estavam apenas fazendo um diagnóstico da época onde viviam, e que não se tratavam de pensamentos que expõem argumentos teológicos.

Mas a pergunta que gerou mais incompreensão foi uma pergunta bastante simples. "- Você é ateu, ou você acredita em deus?", me perguntaram. A pergunta oferece duas opções e pede que você escolha uma delas: Ou uma, ou outra. A expressão 'Ou' marca uma relação exclusiva: Ser ateu e acreditar em deus são duas coisas opostas, e é impossível que uma pessoa seja as duas coisas ao mesmo tempo.

Enquanto estudante de filosofia, sei que existem argumentos imbatíveis para a existência e a não-existência de deus. Mas eles não vem ao caso agora. A questão é: Sou isso, ou sou aquilo? O que sou?

Entendo que só posso afirmar que sou teísta se puder sustentar que deus existem. Os argumentos e referências estão ai: Basta verificarmos a presença do sagrado nas diversas civilizações humanas, demonstrando que não se trata de simples falatório. Da mesma forma, só posso afirmar que sou ateu se puder sustentar que deus não existe. E os argumentos também estão ai: Os próprios gregos previram em textos a fura dos deuses do mundo, e vários pensadores (Plutarco, Lutero, Hegel, Nietzsche e Heidegger) desenvolveram longamente a tese da morte de deus. Os argumentos dos dois lados são poderosos, e você não pode simplesmente negá-los de forma arbitrária.

O grande problema é que vivemos em uma sociedade que espera que sejamos alguma coisa que ela possa reconhecer e controlar. Desse modo, é cômodo ser ateu ou teísta. O perigo consiste em apegar-se com tanta força a esse título a ponto de perder de vista o horizonte desde o qual a pergunta se coloca. De esquecer que, em última análise, não existe resposta definitiva acerca do divino. Nunca existirá. E, aliás, esse assunto não espera que nós o desvendemos. Antes, ele espera de nós crescimento e pensamento. E é por essa razão que existem teístas mais ateus que os ateus, e ateus mais teístas que os teístas.

A resposta que pude dar à pergunta foi negativa: Não sou ateu, e não sou teísta. Ou sou ateu e teísta ao mesmo tempo.

sábado, 1 de janeiro de 2011

O significado da liberdade de imprensa, ou: O oportunismo de Lula e o oportunismo de Demétrio Magnoli

"Liberdade é o direito de fazer
tudo o que as leis consentem"
Montesquieu
"Ninguém é mais escravo do que aquele
que se julga livre sem o ser"
Goethe

Em texto publicado no Estado de São Paulo, entitulada "Herói sem nenhum caráter", Demétrio Magnoli apresenta algumas informações sobre o WikiLeaks e uma crítica à Lula, o agora ex-presidente do Brasil. A leitura do texto não me chamou a atenção, pois não traz informações novas ou mesmo algo digno de reflexão. No entanto, retornei a ela após ler um texto de Caetano Veloso publicado n'O Globo (que pode ser lido aqui). Diz Caetano que a análise de Magnoli é luminosa, e que conduz o leitor ao cerne da questão de liberdade de imprensa. Ele também é mal educado ao qualificar quem são os possíveis críticos de Magnoli.

Retornei então ao texto de Magnoli, para ver se encontrava o que Caetano encontrou. E por isso escrevo isso, para dizer que Caetano Veloso está errado sobre esse texto.


O texto apresenta algumas informações sobre a WikiLeaks, afirma que Assange é um heroi - um herói estranho, mas herói -, afirma que os vazamentos rompem um princípio venerável do jornalismo, entre outros assuntos. No entanto, é a crítica que Magnoli faz a Lula que conclui o texto.

Que Lula foi oportunista ao sair em defesa da WikiLeaks não é ponto digno de polêmica. A oportunidade de ser o primeiro chefe de estado ao sair em defesa de Julian Assange e seu grupo estava lá, ele a viu e a agarrou, como um centro-avante que tem uma chance de gol e acerta o chute. E com rara felicidade o ex-presidente acertou no alvo.

Magnoli critica Lula confrontando seu apoio ao WikiLeaks com o silêncio do ex-presidente em relação ao Irã e a Cuba, e em casos de censura no Brasil. Ele está certo em observar este comportamento ambíguo do ex-presidente. No entanto, isto constitui apenas em um desvio do verdadeiro X da questão, o ponto nevrálgico e mais importante do assunto. O ponto principal do assunto em torno da WikiLeaks não é o comportamento ambíguo de nosso ex-Guia, ou se Assange é um herói ou um herói estranho, mas esse: Até agora, apenas dois chefes de estado manifestaram apoio à WikiLeaks. Todos os outros silenciam. O vice-presidente do estado mais poderoso do mundo diz que Assange é um cyber-terrorista. A questão-chave deveria ser a pandemia de ignorância acerca da liberdade de imprensa.

Magnoli teve a chance de tocar no espinhoso e necessário tema ao contar ao leitor que a publicação dos cabogramas viola um princípio venerável no jornalismo. Nas palavras de Magnoli: "A imprensa não publica tudo o que obtém. O jornalismo reconhece o direito à confidencialidade no intercâmbio normal de análises que circulam nas agências de Estado, nas instituições públicas e nas empresas"
. No entanto, o texto não passa disso. Ele assume como óbvio que sabe o que é liberdade de imprensa, assume que o leitor sabe o que é liberdade de imprensa e assume que esta noção é a mesma nele e no leitor. Aqui Magnoli se converte no mesmo blogueiro chapa-branca que crítica em seu texto: Ele simplesmente reproduz informações há muito ditas, sem oferecer temas para uma meditação. Incapaz de apresentar mesmo uma pequena reflexão acerca do sentido da liberdade de imprensa, precisa recorrer às 'fugas' para completar o texto, e por isso critica Lula de forma oportunística.

Perguntamos, então: o que é liberdade de imprensa? Obviamente, a pergunta apenas se esclarece se pensarmos o que significa liberdade. Normalmente, entendemos liberdade como uma espécie de soltura: Se não existem correntes prendendo nossas mãos ou pés ou nos fincando em um lugar específico, somos livres. Se as correntes não nos escravizam, então estamos livres. No entanto, será que estar livre das correntes equivale à ser livre? Ora, é possível estar liberto de amarras e correntes mas pensar como um escravo. Se, por um lado, as correntes não mais estão ali, por outro lado o pensamento permanece o mesmo. Sem amadurecimento e aprendizado não há liberdade possível. E como não existe manual de instrução que ensine com 100% de segurança a fórmula da liberdade, não temos outra escolha senão tentarmos ser livres através da tentativa e do erro. E será assim até não existirem mais humanos, pois este manual de instrução jamais existirá. Se assumimos que temos que constantemente aprender a ser livres, então devemos admitir que, na maior parte das vezes, somos escravos, e escravos de muita coisa: De nossa arrogância, comodidade, ignorância, entre outros grandes escravocratas.

Liberdade supõe, portanto, amadurecimento e aprendizado. Liberdade é menos "liberdade de" e mais "liberdade para". É preciso ser livre para o jornalismo, o que significa saber que se deve constantemente aprender a ser livre. Infelizmente, o que vemos em boa parte do jornalismo brasileiro são jornalistas arrogantes e que acham que são livres, quando são incapazes de mover uma mínima reflexão em torno da liberdade de imprensa. A melhor forma de defender a liberdade de imprensa não é invocar a cláusula pétrea que a protege, mas o constante aprendizado e reflexão em torno da liberdade. Afinal, tal cláusula pétrea é consequência, e não causa, deste aprendizado.

Porque o El Pais publica os vazamentos, ou: A incompetência das elites políticas

Por Javier Moreno, editor do El Pais, livremente traduzido por mim

"Cínicos irão argumentar que nada do que aprendemos com a WikiLeaks difere do modo usual como a política internacional de alto nível é conduzida, e que um mundo sem segredos diplomáticos é ainda menos organizável e mais perigoso para todos. As classes políticas de ambos os lados do atlântico distribuem uma simples mensagem que é ajustada para levarem vantagem: confiem em nós, não tentem revelar nossos segredos; em troca, nós oferecemos a você segurança.

Mas exatamente quanta segurança eles podem realmente oferecer em troca deste suborno moral? Pouca ou nenhuma, uma vez que estamos diante de um triste paradoxo onde esta é a mesma elite política que foi incapaz de supervisionar com propriedade e crise do sistema financeiro internacional, cuja implosão disparou a maior crise desde 1929, arruinando países inteiros e condenando milhões ao desemprego e pobreza. Estes são as mesmas pessoas responsáveis pela deteriorante qualidade de vida de suas populações, pelo incerto futuro do euro, pela falta de um projeto Europeu viável e a crise global de governança que controlou o mundo nos anos recentes, crise da qual as elites em Washington and Brussels não são esquecidas.

A incompetência dos governos Ocidentais e sua inabilidade para lidar com a crise econômica, mudanças climáticas, corrupção ou a guerra ilegal no Iraque e outros países foi eloquentemente exposta nos anos recentes. Agora, graças à WikiLeaks, nós também sabemos que nossos líderes são também conhecedores das suas vergonhosas falibilidades, e que é apenas graças à inércia da sua maquinaria de poder que eles tem sido capaz de cumprir suas responsabilidades democráticas e responder ao eleitorado.

A poderosa maquinaria de estado é moldada para suprimir o fluxo da verdade e para manter segredos em segredo. Nós estamos vendo nas semanas recentes como a maquinaria foi colocada em ação para tentar limitar o dano causado pelas revelações da WikiLeaks.

Considerando o dano recebido nas mãos da WikiLeaks, não é difícil ver porque os Estados Unidos e outros governos Ocidentais tem sido incapaz de resistir à tentação de concentrar a atenção em Julian Assange. Ele parece um alvo fácil demais, e então eles procuraram questionar sua motivação e o modo como WikiLeaks trabalha. Eles também procuraram questionar porque cinco grandes organizações com prestigiosa reputação internacional concordaram em colaborar com Assange e sua organização. Estas são questões razoáveis, e foram todas respondidas satisfatoriamente ao curso das quatro últimas semanas, apesar da pressão posta sobre nós pelo governo, e, pior ainda, por muitos de nossos colegas de imprensa"

Este pequeno pedaço de texto é uma aula de como o jornalismo deve acontecer.

Leia o texto inteiro clicando aqui