sábado, 27 de setembro de 2008

A guerra na antiguidade

Não tenho alimentado este cachorro aqui direito.

Mas, tenho minhas razões: encontrava-se escrevendo algo mais importante, a saber, a minha dissertação de mestrado.

É, aquela mesma que eu disse que iria dividir com os poucos leitores deste canal.

A dissertação já tem vinte e duas páginas.

Neste post, algumas citações que estão presentes no texto, todas conectadas com o tema da guerra.

"Doce é, pois, a guerra para os inexperientes, mas se assombram singularmente os experientes com sua presença" - Píndaro, frag. 110b.

"Assim numerosos e difíceis (males) tombaram sobre a cidade em consonância com a stásis, que ocorre e sempre ocorrerá enquanto for a mesma a natureza dos homens, também mais tranqüila e diferente em suas formas, conforme cada uma das mudanças das conjunturas sobrevier. Pois na paz e prosperidade, as cidades e os indivíduos têm pensamentos melhores por não caírem em necessidades inevitáveis; a guerra, que suprime as facilidades da cada dia, é um mestre violento e adapta as paixões da maioria de acordo com o momento" - Tucídides, 3.82.2.1

"A morte então se alastrou de todas as formas (idea) possíveis; e, como geralmente acontece em tempos assim, não havia nenhum alcance a qual a violência não podia alcançar" - Tucidides, 3.81.5

Este cachorro mal educado não permitiu que eu escrevesse o texto grego junto. Em outra oportunidade, arrumo um jeito de por os originais aqui.

Em breve, publico o texto inteiro.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O fim & A prece

"Estão sendo organizados em todos os lugares.

E é a responsabilidade dos oficiais do exército.

Cada cidadão responsável deve ter coragem e calma... ajudando o exército a manter... a calma, a ordem e a disciplina.

Nosso pior inimigo agora é o pânico.

É contagioso e não deixa o bom senso prevalecer.

Ordem e organização. Nada mais, meus cidadãos.

Manter a ordem. Ordem... contra todo esse caos.

Eu imploro, humildemente, para serem corajosos... e manterem o espírito do bom senso.

Infelizmente, também em nosso país... há uma base com quatro ogivas e, provavelmente... estas ogivas serão bastante trágicas...

Será usado contra nós.

A comunicação pode ser interrompida a qualquer momento... mas, já falei o mais importante... meus concidadãos.

Todos devem permanecer em seus lugares.

Não há nenhum lugar seguro na Europa.

Desta maneira estamos todos... forçados a permanecermos na mesma situação.

Todos os distritos estão sob controle militar"

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"Pai nosso que estais no céu... santificado seja o vosso nome.

Venha a nós o Vosso reino e seja feita a Vossa vontade... assim na Terra como no Céu.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje... e perdoai as nossas ofensas assim como nós... perdoamos a quem nos ofendeu.

Não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

Oh, Deus! Nos salve neste terrível momento.

Não deixe suas crianças morrerem... nem os meus amigos, minha esposa...

Victor, todos que amam a Vós, todos que em Vós acreditam... todos que em Vós não acreditam porque são cegos... todos que, simplesmente, não vos deram atenção... porque até hoje nunca sofreram.

Todos que, neste momento, perderam suas esperanças, seus futuros... suas vidas e a possibilidade de seguir Vossos pensamentos.

Aqueles apavorados, sentindo o fim chegar... sentindo o pavor, não por si, mas pelo próximo.

Para aqueles que não têm ninguém... além de Vós para proteger... porque esta guerra é a última... uma guerra horrível.

E após, não haverá vitoriosos e nem perdedores... nem cidades e nem vilarejos... nem pasto e nem árvores, nem água nos poços, nem pássaros no céu.

Darei-te tudo que tenho, abandonarei a minha família que amo.

Destruirei minha casa...

Desistirei do meu filho.

Ficarei mudo, nunca mais falarei com ninguém.

Eu desistirei de tudo que me une com a vida... se Vós fizerdes tudo voltar como era antes... como era nesta manhã, como era ontem.

E livrai-me desse mortífero, nojento e animalesco pavor.

Sim, disso tudo!

Deus! Ajudai-me!

Farei tudo que prometi!"


Offret

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Herói. Morto. Nós

por Lourenço Diaféria

(nota do blogueiro: Lourenço Diaféria foi um grande cronista sobre a vida em São Paulo. Ele faleceu hoje, 17 de setembro de 2008. Nos conta Juca Kfouri que, por causa desta crônica, Lourenço foi preso, acusado de ser comunista. Esta crônica foi publicada originalmente em 1° de setembro de 1977, na Folha de São Paulo)

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

A obra

Acordara.

Na verdade, não havia conseguido dormir.

Os pensamentos se faziam e desfaziam nele, como ondas a se formar e quebrar.

A companhia de tais pensamentos era agradável.

Não o era para o sono, mas para todo o resto.

Havia visto algo que o forçara a ficar de olhos abertos. E, apesar de onipotente, nem ele consegue dormir de olhos abertos.

Mesmo que quisesse fechar os olhos, não poderia. Pois eles já estavam completamente entregues à visão.

Paradoxalmente, não se sentia obrigado a ver. Ao contrário, era prazeroso.

Prazeroso o suficiente para fazê-lo levantar da cama e vestir uma muda de roupas velhas, suas favoritas.

Vestido, acendeu sua vela favorita. O ambiente ficou perfeito, pois a vela lhe trouxe suas inseparáveis amigas, luz e sombras.

Com passos preguiçosos, dirigiu-se a cozinha, para encher uma taça com o seu vinho favorito.

Uma vez acompanhado e munido de seus preciosos instrumentos, sentou-se à mesa.

Espalhados na mesa, vários papéis amassados. Esteve perturbado nas últimas noites.

Pois queria impor as letras ao papel, que, sabiamente, rejeitou-as.

"A obra não espera pelo lazer do artista, mas força é que o artista acompanhe o seu trabalho, sem ser à maneira de um passatempo", disse o papel.

Foi quando Ele entendeu porque esteve perturbado.

Os últimos seis dias o deixaram um pouco rabugento.

Tanto que tentou impor as letras ao papel.

A lixeira próxima à mesa estava cheio de imposições fracassadas.

Mas isso não o incomodava. Ninguém é perfeito.

Ele sorveu o vinho e coçou carinhosamente o queixo.

Milagrosamente, o pensamento se articulou.

A ocasião propícia apareceu.

Tudo começou a fazer sentido.

A velha máquina de escrever sorriu.

Foi quando Ele escreveu o mundo...

O golpe e o gol

Por Roberto Vieira

A Bolívia nos recorda de cinco em cinco minutos:

A América do Sul é uma imensa casa dos espíritos.

Há 35 anos, o espírito de Salvador Allende sobrevoa o Estádio Nacional do Chile.

Há 35 anos, Allende foi assassinado no La Moneda.

Há 35 anos, a seleção chilena foi a campo vencer o nada. Marcar um gol no estádio do terror.

A América do Sul é uma imensa casa dos espíritos.

Passarela erguia a Copa do Mundo?

Jovens morriam nos cárceres de Videla.

Pelé driblava Mazurkiewicz?

Médici exultava nos braços do povo.

Cubillas assombrava os búlgaros?

Velasco Alvarado censurava Vargas Llosa.

O futebol ocultava os porões do terror.

Tudo traduzido nas veias abertas por Eduardo Galeano.

Escritor, exilado e apaixonado por futebol.

Ou quem sabe, no Manual do Idiota Latino Americano?

Fica ao critério de cada um.

Quem imagina a casa dos espíritos sul americana um jogo de um time só, engano.

É um jogo que sempre termina 0 x 0.

O regime que o argentino, dublê de goleiro e torcedor do Rosário Central Che Guevara desejava instalar nas selvas de Evo Morales passava longe da democracia.

(Che que era fã de Di Stéfano e pediu autógrafo ao seu ídolo no restaurante La Saeta Rubia em Bogotá)

A guerrilha brasileira lutava por liberdade. Para instaurar uma ditadura.

O ouro da CIA era igual ao ouro de Moscou.

Os cem anos de solidão de García Márques não enxergavam o outono do patriarca jogando baseball.

O continente dos maiores jogadores de futebol do planeta permanece uma grande Liga Pirata.

Uma gigantesca casa dos espíritos.

A terra do golpe e do gol...

domingo, 14 de setembro de 2008

Presente feito de caos e música

Ganhei vários presentes nesse aniversário - e olhe que não sou do tipo de ganha presentes o tempo inteiro. Os distantes ligaram p/ mim. O pessoal da casa fez lasanha e bolo que rendeu o almoço e a janta. Tínhamos apenas uma vela (com o número 4), ou seja, eu regredi vinte anos e celebrei novamente os meus quatro anos.

Mas um presente que eu ganhei é digno de nota. Pois ele é feito de caos e música.

ESTRANHEZA

Louco? Talvez
Ouvi isso mais de uma vez
Suas palavras incomodam
A todos aqueles que se acomodam
Por ser a estranheza

Tolo? Jamais!
O que fala tem brilho
Não se esqueça mais
Deste seu poder
Poder de fazer
Um completo descarrilho
Por ser a estranheza

Não me preocupo, inicialmente
Em enquadrar seus dizeres
E nem criticar os seus fazeres
Pois o que acho, realmente
É que essa quase realeza
É um dos maiores prazeres
Pois nos tira a certeza
De estranhar a estranheza

Mais estranho seria
Se este ser peculiar
Com seu amor pela sabedoria
Deixasse de filosofar

Isso sim, seria a completa estranheza.

sábado, 13 de setembro de 2008

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade é um grande poeta. Para mim, o fato de vários dos seus poemas terem sido escritos sob o impacto aterrorizante da segunda guerra mundial o torna ainda mais interessante. Assim sendo, seguem abaixo alguns poemas do Drummond que eu aprecio.

O primeiro poema é um tanto niilista. Diria até que condensa bastante da experiência nietzscheana do niilismo, onde as coisas perdem o seu peso. O segundo poema é bastante angustiante, pois se refere ao artefato que, acreditava-se na época (e ainda se acredita), podia varrer a vida da face do planeta. O poema da purificação é uma espécie de poema pós-guerra. A angústia faz-se presente quando Drummond pergunta "Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror?". Já o último poema revela uma condição essencial e muito presente no periodo de guerra: a ausência. Ela pode se manifestar de vários modos: uma distância muito distante, a morte...

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


A bomba

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos
interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,
de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,
cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos
de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger
velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação
em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.

Poema da purificação

Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As água ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.

Acordar, viver


Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,

enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

É possível?

Estou aqui sentado no meu pequeno quarto, eu, Brigge, tenho vinte e oito anos e de quem ninguém sabe. Estou aqui sentado e não sou nada. E no entanto este nada começa a pensar, e, num quinto andar, por uma tarde pardacenta de Paris, pensa este pensamento:

É possível, pensa este nada, que se não tenha ainda visto, reconhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milênios para observar, refletir e anotar e que se tenha deixado passar os milênios como recreio da escola em que se come o pão com manteiga e uma maça?

Sim, é possível.

É possível que, a despeito de invenções e progressos, a despeito da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado à superfície da Vida? É possível que se tenha recoberto mesmo esta superfície - que no fim e ao cabo seria ainda alguma coisa - com uma substância incrivelmente enfadonha, que a torna parecida com móveis de salão durante férias de Verão?

Sim, é possível.

É possível que toda a história do universo tenha sido mal compreendida? É possível que o passado seja falso porque se falou sempre de suas multidões como se se contasse de um ajuntamento de muitos homens, em vez de falar daquele em torno do qual elas se reuniam, porque era estrangeiro e morreu?

Sim, é possível.

É possível que julgasse ser preciso recuperar o que aconteceu antes de ter nascido? É possível que fosse perciso recordar a cada um que nasceu dos anteriores, que o sabia portanto e não devia tar ouvidos a outros que pretendiam saber coisa diferente?

Sim, é possível.

É possível que todos estes homens conheçam com toda a exatidão um passado que nunca existiu? É possível que todas as realidades nada sejam para eles; que a sua vida decorra sem estar ligada a anada, como um relogio num quarto vazio - ?

Sim, é possível.

É possível que se não saiba nada das raparigas que no entanto vivem? É possível que se diga "as mulheres", "as crianças", "os rapazes" e não se perssinta (a despeito de toda a cultura se não pressinta) que todas estas palavras já há muito tempo que não têm plural, mas apenas inúmeros singulares?

Sim, é possível.

É possível que haja pessoas que digam "Deus" e suponham que isso é algo de comum? - E vê estes dois meninos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho copra outro igualzinho no mesmo dia. E mostram um ao outro os canivetes passada uma semana, e vê-se então que eles só muito de longe se parecem, - tão diferentemente eles se desenvolveram em mãos diferentes (ora, diz a mãe de um deles: se vós pondes logo tudo a servir e tudo gastais... -). Ah, é verdade: é possível acredtar que se possa ter um Deus sem o usar?

Sim, é possível.

Mas se tudo isso é possível, se tem mesmo uma só ligeira aparência de possibilidade, - então, por quem sois!, é preciso fazer qualquer coisa! O primeiro quidam que teve esse pensamento inquietante, tem de começar a fazer qualquer coisa do que se descuidou; mesmo que seja um qualquer, sem ser o mais apropriado: pois se não há outro... Este jovem, esse estrangeiro sem importância, esse Brigge, terá de sentar no seu quinto andar e escrever, dia e noite: sim, terá de escrever, e isso será o fim.

Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

CONTO DE NATAL

Por Roberto Vieira

(Nota do blogueiro: Todo mundo já jogou futebol quando era pirralho... é verdade, não é natal, mas e daí?)


Quando eu era pequeno e jogava bola no colégio, sempre existia um muro.

Alto e com um cachorro brabo do outro lado.

E a bola, invariavelmente caía do outro lado. No melhor do jogo.

Azar.

O cachorro tinha um dono. Bernardo. Torcedor do Sport. A gente sabia pela imensa bandeira rubro-negra na janela do casarão.

E Bernardo não devolvia a bola, nunca.

A gente também nunca viu o Bernardo. Ele nunca dava as caras. Rico e orgulhoso.

O jogo parava e a gente tinha de esperar até alguém conseguir uma outra bola.

Porque bola era luxo. Se ganhava no aniversário. Por vezes no Natal. E só.

Mas sempre aparecia alguma bola dias depois. Vinda não sei de onde. Quem sabe de outros muros?

O jogo recomeçava. Todo mundo morrendo de medo de chutar mais forte.

Até que dias depois, pimba! A bola era chutada por algum perna-de-pau e ia parar no quintal de Bernardo.

O cachorro gritava. E todo mundo, com medo, ficava esperando o futuro.

Mesmo assim, a infância era feliz. Tinha bola de gude, que nunca caía na casa de Bernardo.

Tinha pipa. Tinha polícia e ladrão. Tinha Fratelli Vita.

Os anos se passaram e o mundo mudou.

Mas sempre que a velha turma se encontrava, lembrava das bolas e do muro. Do cachorro. De Bernardo.

Foi então que ano passado, tive uma surpresa.

Fui visitar o velho colégio. Colégio que vai deixar de ser colégio. Vai virar shopping center.

Uma das irmãs de caridade me reconheceu. Sempre passo por lá no Natal. Estava triste com o fim da escola.

De repente, comentou:

- O antigo casarão também vai virar shopping center! Vão derruba-lo depois do Natal.

Pensei em Bernardo. Na certa iria lucrar uma barbaridade com a venda do imóvel.

Antes que eu pudesse completar meu raciocínio, a irmã apontou um homem sentado no jardim:

- Lembra dele? Era o menino que morava no casarão.

Lá estava Bernardo. Olhando para o jardim, o campinho de terra, a velha quadra de basquete.

Bernardo estava sentado em uma cadeira de rodas.

Não pude deixar de caminhar até ele. Apresentei-me. Eu era o velho menino que chutava as bolas para seu quintal.

Surpreso, Bernardo olhou para mim. Lembrava das bolas.

Perguntei pelo cachorro. Ele disse que Manga, esse o nome do cachorro, havia morrido há muito tempo.

Sorrindo, Bernardo me contou que lembrava das bolas que iam cair no seu quintal.

De como ele sofria ouvindo nosso gritos de gol. Ele que não podia jogar.

Manga ficava muito zangado quando a gente jogava. Ele sofria vendo o seu dono sofrendo. Por isso gritava tanto.

Sua mãe nunca devolvia as bolas. Imaginava que aquele barulho trazia sofrimento ao filho.

Fiquei mudo.

Até que Bernardo, percebendo meu silêncio, murmurou:

- Na verdade eu gostava quando tinha jogo. Você não imagina nas férias, quando o silêncio era completo. E naquela época nem o Sport me dava alegria...

Verdade. Foram os anos do Hexa do Náutico. Do Penta do Santa Cruz.

Despedi-me. Deixei meu telefone com ele. Saí pensativo pelas ruas do Recife.

Eu pensava nas bolas e nos muros. Nas distâncias que separam quintais.

Algo em mim nunca mais foi o mesmo.

Hoje, quando o Náutico perde. Quando o Sport vence. Lembro sempre de Bernardo e de outros meninos como ele.

E agradeço a vida e a Deus.

Deus que sabiamente fez o dia e a noite.

A vitória e a derrota.

Para que o sorriso e a lágrima jogassem bola nos dois lados do muro.

Zé da Lua

Vou postar aqui algumas pérolas raras que encontrei nesses tempos de Internet.

Não sei quem é o autor. Ele se entitula 'Zé da Lua'. O que ele escreveu não possui título, exceto um texto.

Viva a luta de crases!

O problema das crases é muito sério.
Toda uma questão semântica e estrutural na língua se perde sem o entendimento correto das crases.
As crases são úteis.
Vamos estudar o português e conhecer as maravilhas das crases!
As crases permitem uma maior exploração das vogais.
Principalmente da vogal a, de algaravia.
Sem a crase a tradicional burocracia discursiva perde seu sentido organizador de ligação concisa entre o artigo e o...
e o...
bom...
talvez as crases não sejam assim tão importantes.

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ele nasceu...
a besta interior...
o antismo declarado...
o minhoquismo sancionado...
o apocalipse se aproxima feérico...
a barbárie eterna se cristaliza olulante...
eles gritarão: o messias vive!
o tempo de pessimismo não chegou ao seu fim...
visões espectrais e sombrias impressas em alto relevo no mármore branco entronizado...
comeremos merda!,
gritam as prostitutas da sapiência...
não haverá nenhum jamais...
o lixo radioativo é a meta...
paranóia infinita...
na sincronicidade das consciências orfãns...
o estrondo inaudível...
o gosto pálido...
a carne em compotas de geléia...
a agulha invadindo o centro do olho...
torturas...
vazias...
torturas...

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a comida deve ser distribuída entre todas as pessoas de bem.
a comida é a salvação dos intestinos.
a comida sustenta a esperança de uma nação melhor.
a comida deve ser o caminho, a verdade e a luz.
a comida estimula a imaginação.
a comida é a poesia das massas enganadas.
a comida é o sorriso na aurora.
a comida é o ventre da pureza.
a comida enriquece o horizonte.
a comida satisfaz a fome do povo.
a comida retira a amargura do olhar entristecido.
a comida encanta e embala os sonhos do porvir.
a comida justifica nossa luta.
a comida não é uma propaganda política.
a comida será comprida.
a comida será um fato cotidiano.
a comida está além do café com leite.
a comida envolve os vegetais e os legumes.
a comida é o boi, a vaca, o peixe e a melancia.
a comida significa dignidade e respeito.
a comida move montanhas.
a comida restaura a fé nas instituições.
a comida deve ser patriótica.
a comida pode ser regional.
a comida é o gênio da raça.
a comida também é torcida.
a comida também é participação.
a comida também é orgia.
a comida representa a beatitude estomacal.
a comida renova os movimentos peristálticos e anais.
a comida emociona e converte.
a comida disciplina os sentidos do corpo.
a comida será infinita.

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o horror da guerra é incrível.
o horror da guerra é fantástico.
o horror da guerra é traiçoeiro.
o horror da guerra é catártico.
o horror da guerra é hipnótico.
o horror da guerra é sedutor.
quantos não ficaram horas e horas assistindo filmes sobre as guerras?
quantos não ficaram horas e horas assistindo noticiários sobre as guerras?
quantos não ficaram horas e horas lendo romances sobre as guerras?
quantos não ficaram horas e horas lendo reportagens sobre as guerras?
só os ingênuos e burros acreditam que a indústria bélica e a indústria cultural não são irmãs.
estamos consumidos pelas chamas do remorso porque lá no fundo reconheçemos que somos miseráveis assassinos.
mas dirão: eu nunca apertei o gatilho...

Post inaugural: Ser para a morte

Criei esse espaço inspirado no blog recém aberto de um amigo. Assim como eu, ele também não liga muito para blogs. Entretanto, mesmo assim ele abriu um blog. Por quê? Só ele pode efetivamente responder tal pergunta. No meu caso, abrir um blog vai ajudar a satisfazer algo que gosto muito de fazer - e acho que não sou o único que gosta. Quem é que não gosta de compartilhar com os outros as coisas que considera engraçadas, bonitas, enfim, as coisas que você simplesmente considera? Esse é o objetivo do blog: compartilhar textos e outras coisas com os poucos leitores que ele terá. Além disso, vez ou outra falarei aqui da dissertação que estou escrevendo sobre a experiência da guerra no pensamento antigo.

A criação deste blog foi um processo engraçado. Eu descobri lá pelas tantas que tinha que dar um nome p/ essa coisa. Nesse instante eu pensei na criatura que batizou a filha de "Talula Dança a Hula do Hawaii". Decidi que o blog teria um nome legal e simples. Comecei a procurar um. Philosophia? Não, ocupado. Pólemos? Não, ocupado. Uma a uma, as primeiras ideías que tive revelaram-se nomes que já estavam ocupados.

Foi então que pensei: "Preciso de um nome original, algo que só eu tenha pensado, algo que fará com que os outros lembrem de mim e me reconheçam". Foi então que surgiu a idéia perfeita: TUDO MENTIRA! Sim, é a idéia perfeita. Surgiu quando entrei no meio de uma discussão dizendo 'Tudo mentira'. Instantaneamente eu já me encontrava numa conversação, com uns realmente achando que eu fazia parte da conversa, enquanto outros riam horrores. Sim, o nome é ideal. E ninguém seria tão maluco ao ponto de pensar nisso... ... nome ocupado.

"Deuses, e agora?", eu pensei. Havia algum debilóide em algum lugar do mundo tão debilóide quanto eu. Fui dormir, iria pensar no maldito nome uma outra hora. Acordando no outro dia, fui estudar. É o texto de um pensador alemão que sustenta que o que faz o homem ser homem é o "Ser-para-morte". Segundo esse pensador, só o homem morre. Só o homem experimenta a morte como morte. O animal não morre, o animal acaba; o homem morre. Morrer não é acabar; morrer é experimentar a todo o tempo a possibilidade do fim. Por experimentar isso a todo o instante, o homem cuida da sua existência e faz coisas que possam, de algum jeito, eternizá-la. "Ser-para-morte". Nomezinho bacana. Quem sabe ele não seja o nome do blog? Mas, bah, isso é um conceito de um filósofo super conhecido. Certamente algum estudioso ou um outro maluco feito eu já deve ter pensado nisso... ... nome não ocupado.

Estranho, não? Um nome idiota, surgido num momento ímpar de idiotice e palhaçada, está ocupado, enquanto outro nome, muito mais simples, importante e universal, estava desocupado. Que coisa...

Cuido muito mal de cachorros, então não sei se isso vai em frente. Mas também não sei se isso não vai em frente, então...

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A Criança que Pensa em Fadas


A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

(Alberto Caeiro)