terça-feira, 29 de setembro de 2009

Carpinejar para todos

Por Fabrício Carpinejar

Estava na mesa-redonda da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ouvi atentamente a palestra de Içami Tiba, colega de painel, que falou de modo elétrico, seguro e convincente.

É um orador no estilo de grande auditório, conciliando humor com exemplos.

Mas, em algum momento, ele disse: “A família é como uma empresa”.

E aquilo me incomodou profundamente. Aquilo me arrancou a audição.

“É na família que forjamos vencedores. Se os filhos não obedecem, não fazem nada, tem preguiça para qualquer coisa, não ficariam numa empresa, é o mesmo processo.”

Caso meu avô Leônida escutasse isso, soltaria um de seus xingamentos prediletos: “Vai catar coquinho e deixar de ser besta”.

A família não é uma empresa. Nem deve ser. Não vou demitir ninguém em casa. O pai ou a mãe não é o que queremos deles, mas o que eles podem oferecer.

Estou de saco cheio de ouvir que uma família deve trazer rentabilidade, organização e competência. A cobrança não fixa um lar.

Na minha residência, cada um tinha uma tarefa. Mas não era uma empresa, ou uma cooperativa. Não fui promovido. Não esperava cargos de confiança. Os irmãos me continuavam.

Quando fui demitido uma vez do serviço, expliquei para minha filha de 4 anos o que havia acontecido.

“O trabalho não me quis mais.”

Ela respondeu bem calma:

“São bobos, fique calmo, será meu pai sempre.”

Eu dependo de um lugar para falir na minha vida. Deixe-me ao menos a família.

Eu posso perder tudo, menos a família. A família é meu despertencimento, a adoração dos telhados, o avental no gancho da cozinha. Nem Deus, nem seus capatazes tiram aquilo que foi desejo. Podem subtrair minha memória, mas guardarei o desejo fora de mim. Em minha mulher.

A família é o único lugar que continuaremos vivendo sem a expectativa de acertar. Mente-se diante da agenda, não de um prato de comida. Precisamos de um espaço para falir, para errar e se debruçar em nossas fraquezas. Já tenho que ser funcional no emprego, no lazer, nas relações com os outros. E agora a sugestão é que trabalhemos também na família. Isso é exploração infantil, isso é jornada dupla, isso é transformar elos naturais em conexões automáticas.

A família depende de uma única coisa: a intimidade. E intimidade não é emprestada, intimidade é não pedir de volta.

A família é o único lugar que me permite ser verdadeiro. É o único reduto de autenticidade. Não vamos colocar a competição dentro dela. Ou encher os nossos filhos de horários e de obrigações para que não pensem bobagens. Eles carecem das bobagens para escolher seus caminhos. Ser ocupado não nos torna importantes; não nos torna responsáveis. Envelhecer é se desocupar para a amizade.

Quando pequeno, não fiz natação, não fiz inglês, não fiz informática, não fiz o raio-que-parta. Eu tinha o tempo livre depois da escola e jogava futebol com os colegas, roubava frutas e brincava na casa dos vizinhos. Voltava para a casa quando a mãe gritava: “tá na mesa!”. A infância é própria para a vadiagem. Quando iremos vadiar de novo?

Se a família é uma empresa, um dia os filhos vão pedir demissão, um dia o pai e a mãe vão se aposentar, um dia os tios vão pedir concordata, um dia o genro vai desviar recursos.

Na família, os laços são eternos e não provisórios como uma empresa. Família não é trabalho, família é experiência. E nunca haverá perdedores na família, mas irmãos e filhos e pais. Eles são a família, não um referencial de realização.

Essa exigência de sucesso na família implica em não aceitar os perdedores. O que são os perdedores senão os mais sensíveis à pressão? Por isso, famílias se assustam com os problemas e escondem filhos alcoólatras, drogados e doentes em clínicas. Sofrem com a cobrança pública. Temem a exposição de seus defeitos.

Família é ter defeitos, é ter fantasmas, é ter traumas. Frustração é não contar com uma família para se frustrar.

Família é compreensão, não um acordo.

Não temos que alimentar vergonhas de nossas vergonhas. Família é onde tiramos os sapatos e deitamos os casacos. Não promoverei reunião-almoço na minha sala. Não afastarei um parente pela malversação. Não solicitarei a restituição das mesadas. Não exigirei que minha filha escolha Medicina ou Direito pela estabilidade. Não condiciono minha paixão a resultados.

Um patrão nunca será um pai. Não procuro disciplinar meus filhos, o amor é a mais suave disciplina. E o abraço é a minha desordem.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O sangue em Chiapas

José Saramago

Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protectora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos. Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue. O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. Às vezes o sangue monta a cavalo e fuma cachimbo, às vezes olha com olhos secos porque a dor lhos secou, às vezes sorri com uma boca de longe e um sorriso de perto, às vezes esconde a cara mas deixa que a alma se mostre, às vezes implora a misericórdia de um muro mudo e cego, às vezes é um menino sangrando que vai levado em braços, às vezes desenha figuras vigilantes nas paredes das casas, às vezes é o olhar fixo dessas figuras, às vezes atam-no, às vezes desata-se, às vezes faz-se gigante para subir às muralhas, às vezes ferve, às vezes acalma-se, às vezes é como um incêndio que tudo abrasa, às vezes é uma luz quase suave, um suspiro, um sonho, um descansar a cabeça no ombro do sangue que está ao lado. Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Mozart, alaúde de Deus

Há pouco tempo, estive estudando uma conferência de 1956 proferida por um filósofo chamado Martin Heidegger, sobre a questão do ser. Uma conferência indigesta de ler, devido à gravidade e a dificuldade intrínseca ao tema.

Por causa disso, o pensador sempre recorre a exemplos. Mas não qualquer um, mas a exemplos verdadeiramente exemplares.

Eis que me deparo com esta preciosidade. Para exemplificar a seus alunos o que é o fenômeno do ser, Heidegger trouxe uma carta escrita por Mozart. Meu primeiro instinto foi traduzi-la e dividi-la com os colegas. Segue o conteúdo da carta:

"Durante uma viagem de carruagem, em uma caminhada após uma boa refeição, ou nas noites em que não consigo dormir, é quando os melhores pensamentos vem até mim.

Torrencialmente.

Então, aqueles que conseguem me agradar são os que guardo em minha mente, e às vezes até os murmuro em voz alta (ao menos é o que os outros me dizem).

Agora, se eu permanecer com eles, logo uma parte atrás da outra vem até mim, como se eu estivesse coletando migalhas para fazer massa, de acordo com as regras do contraponto e com a ressonância dos vários instrumentos. Isto acende a minha alma, isto é, se não sou perturbado.

Então a massa fica grande e eu a espalho, sempre completa e lucidamente, e a coisa fica praticamente plena na minha cabeça, ainda que seja muito longa, de modo que olho com a mente para ela e a vejo como uma linda pintura ou como um belo homem, e a ouço na imaginação de modo algum serialmente, como partes que se sucedem, mas como se ouvisse tudo ao mesmo tempo.

Isto é um banquete!

Tudo - o procurar e o compor - procede em mim como um lindo e vívido sonho. Mas o ouvir a tudo ao mesmo tempo é, de fato, a melhor coisa"

Ao fim do exemplo, completa o filósofo: a música transformou Mozart no "alaúde de Deus".