sábado, 13 de setembro de 2008

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade é um grande poeta. Para mim, o fato de vários dos seus poemas terem sido escritos sob o impacto aterrorizante da segunda guerra mundial o torna ainda mais interessante. Assim sendo, seguem abaixo alguns poemas do Drummond que eu aprecio.

O primeiro poema é um tanto niilista. Diria até que condensa bastante da experiência nietzscheana do niilismo, onde as coisas perdem o seu peso. O segundo poema é bastante angustiante, pois se refere ao artefato que, acreditava-se na época (e ainda se acredita), podia varrer a vida da face do planeta. O poema da purificação é uma espécie de poema pós-guerra. A angústia faz-se presente quando Drummond pergunta "Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror?". Já o último poema revela uma condição essencial e muito presente no periodo de guerra: a ausência. Ela pode se manifestar de vários modos: uma distância muito distante, a morte...

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


A bomba

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos
interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,
de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,
cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos
de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger
velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação
em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.

Poema da purificação

Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As água ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.

Acordar, viver


Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,

enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

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