segunda-feira, 14 de março de 2011

Porque não estou preocupado com os reatores nucleares japoneses

Muitas pessoas ficaram assustadas com as notícias acerca dos reatores nucleares japoneses. Por esta razão, um blogueiro americano pediu a um professor do MIT que esclarecesse sua família sobre os riscos envolvidos no acidente com os reatores. Apesar de longo, o texto é claro e didático, e por isso traduzo-o livremente para o português, para que mais pessoas leiam e saibam de fato o que está acontecendo, ao invés de ficarem ao gosto do sensacionalismo dos jornais. A versão original (e constantemente atualizada) do artigo está presente aqui. A lista de publicações do autor pode ser vista aqui, caso você tenha interesse.

PORQUE NÃO ESTOU PREOCUPADO COM OS REATORES NUCLEARES JAPONESES

por Josef Oehmen, phD pelo MIT.

Eu estou escrevendo este texto (em doze de março) para dar a você alguma paz de espírito a respeito de alguns acontecimentos no Japão, a saber, a segurança dos reatores nucleares. A situação é séria, mas está sob controle. E este texto é longo! Mas você aprenderá mais sobre usinas nucleares depois de ler do que todos os jornalistas deste planeta juntos.

Aconteceu e NÃO acontecerá nenhuma significante liberação de radiação.

Por "significante" quero dizer um nível de radiação de mais daquilo que você receberia em – digamos – um vôo de longa distância, ou bebendo uma cerveja que vem de certas áreas com altos índices de radiação natural.

Eu tenho lido cada notícia acerca do incidente desde o terremoto. Não houve uma única (!) notícia que era precisa e livre de erros (e parte deste problema é também a fraqueza na comunicação da crise japonesa). Por "não livre de erros" eu não me refiro ao tendencioso jornalismo anti-nuclear – que é bastante normal nestes dias. Por "não livre de erros" eu quero dizer erros gritantes a respeito de física e das leis da natureza, além de grosseiras interpretações de fatos, provindas de uma falta fundamental e básica de compreensão da froma como reatores nucleares são construídos e operados. Eu li uma notícia de três páginas da CNN onde cada parágrafo continha um erro.

Nós teremos que cobrir alguns fundamentos antes de ir ao que está realmente acontecendo.
A construção das usinas nucleares em Fukushima

As usinas em Fukushima são chamadas "Boiling Water Reactors" [nota: reatores de água fervente], ou BWR. Estes são similares a uma panela de pressão. O combustível nuclear aquece água, a água ferve e cria vapor, o vapor então gira turbinas que criam a eletricidade, e o vapor é então resfriado e condensado novamente em água, e a água é enviada novamente para ser aquecida pelo combustível nuclear. A planela de pressão opera em torno de 250 °C.

O combustível nuclear é óxido de urânio. Óxido de urânio é uma cerâmica com um ponto de fusão muito alto de cerca de 3000 °C. O combustível é fabricado em pastilhas (pense em pequenos cilindros do tamanho de peças de Lego). Esses pedaços são então colocados juntos em um tubo longo feito de zircaloy [uma solução sólida de vários metais, entre eles o zircônio], com ponto de fusão de 2200 °C, e então selados. Isto tudo é chamado de 'bastão de combustível'. Estes bastões são então ajuntados para formar grandes pacotes, e um número desses pacotes são então colocados dentro do reator. Todos esses pacotes juntos são referidos como o "núcleo".

O tubo de Zircaloy é o primeiro mecanismo de contenção. Ele separa o combustível radioativo do resto do mundo.

O núcleo então é colocado em um "recipiente de pressão". Quer dizer, na panela de pressão na qual falamos antes. O recipiente de pressão é o segundo mecanismo de contenção. Este é um robusto pedaço de pote, construído para conter com segurança o

núcleo e temperaturas de várias centenas de graus. Isto cobre os cenários onde o resfriamento pode ser restaurado em algum momento.

Todo o 'esqueleto' do reator nuclear – o recipiente de pressão e todos os canos, bombas, reservas de refrigerantes (água) – é então trancado no terceiro mecanismo de contenção. Este é uma bolha hermeticamente fechada e muito espessa, feitas do mais forte metal e concreto. O terceiro mecanismo de contenção é idealizado, construído e testado com um simples propósito: Para conter, indefinidamente, um derretimento completo do núcleo. Para esse propósito, um grande e espesso 'dique' de concreto é lançado sob o recipiente de pressão (o segundo mecanismo de contenção), tudo dentro do terceiro mecanismo. Este é o tão-chamado "agarrador do núcleo". Se o núcleo derreter e o recipiente de pressão explodir (e eventualmente derreter), ele irá segurar o combustível derretido e tudo mais. É tipicamente construído de forma que o combustível nuclear irá se espalhar, para que possa se resfriar.

O terceiro mecanismo de contenção é então cercado pela construção do reator. Esta é uma casca externa que mantém as intempérias climáticas de entrarem, mas nada dentro (esta é a parte que foi danificada na explosão, mas mais sobre isso depois)

Fundamentos de reações nucleares

O combustível de urano gera calor através de fissão nuclear. Grandes átomos de urânio são divididos em átomos menores. Isto gera calor e neutrons (uma das partículas que formam átomos). Quando o neutron atinge outro átomo de urânio, este se divide, gerando mais neutros e dai por diante. Isso é chamado de reação nuclear em cadeia.

Agora, apenas deixar vários bastões de combustível perto um do outro rapidamente conduziria a um superaquecimento e, após cerca de 45 minutos, a um derretimento dos bastões de combustível. É digno de menção que, neste ponto, o combustível nuclear em um reator NUNCA causará uma explosão nuclear no tipo de uma bomba. Construir uma bomba nuclear é na verdade muito difícil (pergunte ao Irã). Em Chernobyl, a explosão foi causada por acúmulo excessivo de pressão, explosão de hidrogênio e ruptura de todas as contenções, propalando material de núcleo derretido no ambiente (uma "bomba suja"). Por que isso não aconteceu e não irá acontecer no Japão, mais abaixo.

Para controlar a reação nuclear em cadeia, o operador do reator usa o tão-chamado "bastão de controle". Estes bastões absorvem os neutrons e matam a reação em cadeia instantaneamente. O reator nuclear é construído de tal forma que, quando operado normalmente, você retira todos os bastões de controle. A água refrigeradora então retira o calor (e o converte em vapor e eletricidade) na mesma proporção que o núcleo o produz. E você tem muito espaço para pensar em torno desta operação padrão de cerca de 250 °C.

O desafio é que o núcleo continua produzindo calor após a inserção dos bastões que cessam a reação em cadeia. O urânio "parou" a reação em cadeia. Mas um número de elementos radioativos intermediarios são criados pelo urânio durante a fissão, mais notavelmente isótopos de Césio e Iodo, isto é, versões radioativas destes elementos que irão eventualmente se dividir em átomos menores e que não serão mais radioativos. Estes elementos continuamente decaem e produzem calor. Porque eles não são novamente gerados pelo urânio (pois ele parou de decair quando os bastões de controle foram inseridos), eles ficam menores e menores, e então o núcleo respira em questão de dias, até que estes elementos radioatios intermediários são completamente usados.

Este calor residual está causando as dores de cabeça agora.

Então, o primeiro "tipo" de material radioativo é o urânio nos bastões de combustível, e também os elementos radioativos intermediários no qual o urânio se divide, também dentro do bastão de combustível (Césio e Iodo).

Há um segundol tipo de mateirla radioativo, fora dos bastões de combustível. A grande diferença: Este segundo tipo de material tem uma vida muito curta, o que quer dizer que decai muito rápido e se divide em materiais não radioativos. Por rápido eu quero dizer segundos. Então se eles materiais radioativos são liberados no ambiente, sim, radioatividade foi liberada, mas não, não é perigoso de forma alguma. Por quê? No tempo em que você soletrar R-A-D-I-O-N-U-C-L-É-I-C-O, eles serão inofensivos, pois terão se dividido em elementos não radioativos. Estes elementos radiativos são N-16, o isotopo radioativo do nitrogênio (ar). Os outros são gases nobres como o argônio. Mas de onde eles vem? Quando o urânio se divide, ele gera um neutron. A maioria desses neutros irá atingir outros átomos de urânio, mantendo a reação em cadeia. Mas alguns deles irão deixar o bastão de combustível e atingir as moléculas de água, ou o ar que há na água. Entaõ, um elemento não radioativo pode "capturar" o neutron. Ele se torna radioativo. Como descrito acima, ele irá rapidamente (segundos) se livrar do neutron e retornar à sua forma anterior.

Este segundo "tipo" de radiação é muito importante quando nós falamos sobre a radiação sendo liberada no ambiente.
O que aconteceu em Fukushima

Eu tentarei fazer um sumário dos principais fatos. O terremoto que atingiu o Japão foi cinco vezes mais poderoso do que o pior dos terremotos para o qual a usina nuclear foi construída (a escala Richter funciona logaritmicamente; a diferença entre o 8,2 para o qual a planta foi construída e o 8,9 que aconteceu é de cinco vezes, não 0,7). Então, o primeiro 'hurrah' para a engenharia japonesa, tudo ficou de pé.

Quando o terremoto de 8,9 sacodiu a terra, todos os reatores nucleares entraram em desligamento automático. Segundos após o começo do terremoto, os bastões de controle foram inseridos no núcleo e a reação nuclear em cadeia do urânio parou. Agora, o sistema de resfriamento tem que se livrar do calor residual. A carga do calor residual é de cerca de 3% da carga de calor em condições normais de operação.

O terremoto destruíu a fonte externa de energia do reator nuclear. Este é um dos acidentes mais sérios para uma usina nuclear, e, de acordo, um plano contra eventuais blecautes recebem muita atenção na criação de sistemas de segurança. A energia é necessária para manter a refrigeração funcionando. Desde que a usina foi desligada, ela não pode produzir qualquer eletricidade por ela mesma.

As coisas correram bem por uma hora. Um dos múltiplos grupos de geradores de Diesel emergenciais entrou em cena e proveu a eletricidade que era necessária. Então o Tsunami veio, muito maior do que as pessoas esperavam quando construíram a usina. O tsunami levou consigo todos os geradores de Diesel.

Ao criar uma usina nuclear, engenheiros seguem uma filosofia chamada de "Defesa de profundidade". Isto quer dizer que você primeiro constrói tudo para suportar a pior catástrofe que você imaginar, e então cria a usina de tal modo que ela consiga ainda suportar uma falha de sistema (aquela que você pensou que nunca iria acontecer) atrás da outra. Um tsunami destruindo toda a energia de reserva em um rápido golpe é um desses cenários. A última linha de defesa é por tudo no terceiro mecanismo de contenção, que irá manter tudo dentro do reator, não importando a sujeira, bastões de controle dentro ou fora, núcleo derretido ou não.

Quando os geradores de diesel sumiram, os operadores do reator apelaram para bateriais emergenciais. As baterias foram criadas como uma reserva da reserva, para prover energia para o resfriamento do núcleo por oito horas. E eles proveram.

Nestas oito horas, outra fonte de energia tinha que ser encontrada e conectada à usina. A rede de energia estava desligada por causa do terremoto. Os geradores de diesel destruídos pelo tsunami. Então geradores móveis de diesel entraram em cena.

Aqui é quando as coisas começaram a ficar seriamente erradas. Os geradores externos não puderam ser conectados à usina (o plug não coube). Então, assim que as baterias foram consumidas por completo, o calor residual não pode mais ser resfriado.

Neste ponto os operadores começam a seguir os procedimentos de emergência existentes para o caso de "perda de refrigeração". É novamente um passo dentro da "Defesa de profundidade". A energia dos sistemas de refrigeração nunca deveriam ter falhado completamente, mas eles falharam, e por isso o operador 'fugiu' para a próxima linha de defesa. Tudo isso, ainda que possa parecer chocante para nós, é parte do treinamento de cada dia que você atravessaria se fosse um operador, logo ao lado de como lidar com um derretimento de núcleo.

É aqui que as pessoas começaram a falar sobre o derretimento do núcleo. Porque, no fim do dia, se o resfriamento não for restabelecido, o nucleo irá eventualmente derreter (após horas ou dias), e a última linha de defesa, o agarrador do núcleo e o terceiro mecanismo de contenção, irão eventualmente entrar em cena.

Mas o objetivo neste estágio era administrar o núcleo enquanto ele aquecia, e garantir que a primeira contenção (os tubos de Zircaloy que contém o combustível nuclear), assim como a segunda contenção (a nossa panela de pressão) continuem intactas e operacionais tanto quanto possível, para dar tempo aos engenheiros de consertar o sistema de refrigeração.

Porque a refrigeração do núcleo é tão importante, o reator possui um grande número de sistemas refrigerantes, cada um em multiplas versões (o sistema de limpeza de água, a remoção de calor que provém do decaimento de elementos radioativos, o sistema de refrigeração em espera e o sistema emergencial de resfriamento do núcleo). Qual deles falhou e quando falhou ainda não é claro.

Então imagine nossa panela de pressão no fogão, o fogo baixo, mas ligado. Os operadores usam qualquer sistema de refrigeração que eles tem para se livrar de tanto calor quanto possível, mas a pressão começa a se acumular. A prioridade agora é manter a integridade da primeir contenção (manter a temperatura dos bastões de combustível abaixo de 2200 °C), assim como a segunda contenção, a panela de pressão. Para manter a integridade da panela de pressão (a segunda contenção), a pressão tem que ser liberada de tempo em tempo. E é porque isso é tão importante em uma emergência que o reator possui onde válvulas para liberar pressão. Os operadores agora começam a ventilar vapor de tempo em tempo para controlar a pressão. A temperatura neste estágio era de cerca de 550 °C.

É aqui que notícias sobre "vazamento de radiação" começam a aparecer. Eu acredito que expliquei acima porque liberar o vapor é teoricamente o mesmo que liberar radiação no ambiente, mas porque não era e não é perigoso. O nitrogênio radioativo, assim como os gases nobres, não são uma ameaça à saúde humana.

Em algum momento durante essa ventilação, a explosão aconteceu. A explosão aconteceu fora da terceira contenção (nossa "última linha de defesa"), na casca exterior do reator. Lembre-se que esta casca não é usada para manter contida a radioatividade. Não está inteiramente claro porque isso aconteceu, mas este é o cenário mais provável: Os operadores decidiram ventilar o vapor do recipiente de pressão não diretamente no ambiente, mas no espaço entre a terceira contenção e a casca externa (para dar à radioatividade no vapor mais tempo para decair). O problema é que, nas altas temperaturas que o núcleo atingiu neste estágio, as moleculas de água podem se "desassociar" em oxigênio e hidrogênio – uma mistura explosiva. E ela explodiu, fora da terceira contenção, danificando a construção ao redor da usina. Foi uma explosão semelhante, mas dentro do recipiente de pressão (porque foi mal criada e pessimamente administrada pelos operadores) que ocasionou a explosão de Chernobyl. Este nunca foi um risco em Fukushima. O problema da formação hidrogênio-oxigênio é um dos maiores quando você constrói uma usina (a não ser que você seja soviético, é claro), então o reator é construído e operado de forma que nunca aconteça dentro da contenção. Aconteceu fora, o que não era planejado mas era um cenário possível e aceitável, pois não oferece risco à contenção.

Então a pressão está sob controle, e o vapor foi ventilado. Agora, se você continuar fervendo o seu pote. O problema é que o nível de água seguirá diminuindo e diminuindo. O núcleo é coberto por vários metros de água para permitir que passe algum tempo (horas, dias) até que fique exposto. Quando os bastões começam a ser expostos, as partes expostas vão alcançar a temperatura crítica de 2200 °C em cerca de 45 minutos. É quando a primeira contenção, os tubos de Zircaloy, falham.

E isso começou a acontecer. O resfriamento não pode ser restaurado antes porque houve dano limitado ao invólucro de algum dos combustíveis. O material nuclear em si continua intacto, mas a casca de Zircaloy começou a derreter. O que acontece agora é que alguns subprodutos do decaimento do urânio – Césio e Iodo radioativos – começaram a se misturar com o vapor. O principal problema, urânio, ainda estava sob controle, pois os bastões de óxido de urânio estariam bons até 3000 °C. Foi confirmado que uma pequena quantidade de Césio e Iodo foram detectados no vapor que foi liberado na atmosfera.

Isto é o sinal desencadeador de um grande plano B. As pequenas quantidades de Césio detectadas disseram aos operadores que que a primeira contenção de um dos bastões estava prestes a ceder. O plano A era restaurar a refrigeração do núcleo. Porque falhou não é claro. Uma explicação plausível é que o tsunami levou embora ou poluiu toda a água limpa necessária para o sistema regular de refrigeração.

A água usada no sistema de refrigeração é muito limpa, desmineralizada. A razão para usar água limpa é a já mencionada ativação dos neutros que vem do Urânio: Água pura não se ativa facilmente, e então continua praticamente livre de radiação. Água suja ou salgada absorvem os neutros rapidamente, se tornando mais radioativas. isto não tem qualquer efeito no núcleo – ele não liga com o que é resfriado. Mas faz a vida mais difícil para os operadores e mecânicos quando eles tem que lidar com a água ativada, quer dizer, irradiada.

Mas o Plano A falhou – sistemas de refrigeração desligados ou fontes adicionais de água limpa indisponíveis – e o Plano B veio a tona. Isto é o que parece ter acontecido: Para prevenir o derretimento do núcleo, os opedaores começaram a usar águas do oceano para resfriar o núcleo. Eu não estou certo se eles inundaram a panela de pressão (a segunda contenção) com ela, ou se inundaram a terceira contenção, imergindo a panela de pressão. Mas isso não é relevante para nós.

O ponto é que o cobustível nuclear está agora resfriado. Já que a reação em cadeia foi interrompida há muito tempo, agora pouquíssimo calor residual é produzido. A grande quantidade de água usada para refrigerar o núcleo é suficiente para receber esse calor. Porque é muita água, o núcleo não produz calor suficiente para liberar qualquer pressão significante. Além disso, ácido bórico foi adicionado à água. O ácido bórico é um "bastão líquido de controle". Caso esteja acontecendo algum decaimento, o Bório vai capturar os neutrons e acelerar o resfriamento do núcleo.

A usina chegou perto de um derretimento de núcleo. Este é o pior cenário que foi evitado: Se a água do oceano não pudesse ser usada, os operadores continuariam a ventilar o vapor de água para impedir o acúmulo de pressão. A terceira contenção seria completamente selada para permitir que aconteça o derretimento do núcleo sem liberação de material radioativo. Depois do derretimento, haveria um periodo de espera para que os elementos radioativos intermediários decaíssem dentro do reator, e todas as particulas radioativas assentassem dentro da contenção. O sistema de refrigeração seria eventualmente restaurado, e o núcleo derretido resfriado a uma temperatura aceitável. A contenção teria que ser limpa por perto. E então um trabalho sujo de remover o núcleo derretido iria começar, juntando o (agora sólido) combustível pedaço por pedaço para transportá-lo para usinas de processamento. A depender do dano, todo o bloco da usina deveria ser ou reparado ou desmanchado.

Agora, onde isso nos deixa? Minha avaliação:

* A usina está segura e continuará segura.
* O Japão está lidando com um acidente nível 4 na escala INES: acidente nuclear com consequências locais. Isso é ruim para a companhia que é dona da usina, mas não é para todos os outros.
* Alguma radiação foi liberada quando a panela de pressão ventilou. Todos os isótopos radioativos do vapor irradiado sumiram (decairam). Uma pequena quantidade de Césio foi liberada, assim como Iodo. Se você estava sentado bem emcima das chaminés da usina quando ela estava ventilando, você provavlemente deve desistir de fumar para retornar à sua antiga expectativa de vida. Os isótopos de Césio e Iodo foram carregados para o mar e nunca mais serão vistos.
* Houve dano limitação à primeira contenção. Significa que alguma quantidade de Césio e Iodo foram também liberados na água, mas não Urânio ou outras coisas (o óxido de Urânio não dissolve na água). Existem estações de tratamento para a água usada na refrigeração dentro da terceira contenção. O Césio e Iodo radioativos serão removidos e eventualmente guardados como lixo radioativo em um armazém.
* A água do oceano usada na refrigeração ficará irradiada em certo grau. Porque os bastões de controle estão completamente inseridos, a reação em cadeia do Urânio não está acontecendo. Isso significa que a principal reação nuclear não está acontecendo, não está contribuindo para a ativação. Os materiais radioativos itnermediários (Césio e Iodo) praticamente desapareceram nesse estágio, pois a reação do Urânio parou há muito tempo. Isto reduz a irradioação. No fim, haverá um pequeno nível de irradiação da água do oceano, que será removida nas estações de tratamento.
* A água do oceano será então substituída com o tempo por água normal para resfriamento.
* O núcleo do reator será desmontado e transformado para uma estação de processamento, assim como em qualquer mudança regular de combustível.
* Os bastões de combustível e toda a usina serão checados em busca de danos potenciais. Isso leva cerca de 4 ou 5 anos.
* A segurança dos sistemas das usinas japonesas serão melhoradas para suportar um terremoto de 9.0 e tsunamis (ou pior).
* Eu acredito que o mais significamente problema será a prolongada falta de energia. 11 dos 55 reatores nucleares em diferentes usinas foram desligados e terão de ser inspecionados, diretamente reduzindo a capacidade de geração de energia nuclear do Japão em 20%, num pais onde a energia nuclear responde por 30% da capacidade de geração. Eu não observei possíveis consequências para outras usinas nucleares não diretamente afetadas. Isso será provavelmente coberto com usinas de gás que são utilizadas apenas em momentos de picos de consumo. Eu não estou familiarizado com a cadeia janpoesa de suprimentos de petróleo, gás e carvão, e que dano os portos, refinarias, estoques e sistemas de transportes receberam, assim como danos à rede de distribuição. Tudo isso irá aumentar sua conta de energia, assim como levar à blecautes durante picos de demanda e esforços de reconstrução no Japão.
* Isto é apenas parte de uma figura muito maior. Uma resposta de emergência tem que lidar com abrigos, água potável, comida e cuidados médicos, infraestrutura de transporte e comunicação, além de suprimentos de eletricidade. Em um mundo de magras cadeias de suprimentos, nós estamos olhando para um dos maiores desafios em todas essas áreas.

Se quiser se manter informado, por favor esqueça as habituais mídias e consulte os seguintes sites

* http://www.world-nuclear-news.org/RS_Battle_to_stabilise_earthquake_reactors_1203111.html
* http://www.world-nuclear-news.org/RS_Venting_at_Fukushima_Daiichi_3_1303111.html
* http://bravenewclimate.com/2011/03/12/japan-nuclear-earthquake/
* http://ansnuclearcafe.org/2011/03/11/media-updates-on-nuclear-power-stations-in-japan/

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Cisne Negro

Assisti ao filme Cisne Negro, preciosidade cinematográfica de Darren Aronofsky. Empolgado pelo filme, comecei a procurar por textos, críticas e depoimentos de outras pessoas. Não encontrei nas críticas o que eu encontrei no filme. O empolgante comentário de @mausaldanha no seu Cabine Celular me encheu de vontade de fazer o que ele não pôde fazer ali, dada a natureza de seu trabalho: uma discussão um pouco mais aprofundada (com spoilers) das coisas que o filme oferece para pensar. Fazem-se necessárias algumas advertências: 1) não entendo nada de cinema; 2) esse texto não pretende apresentar um 'modo definitivo' de como ver o filme, mas apenas minha visão. Penso que um filme vale o tanto que ele oferece a pensar. O que está escrito aqui foi o que consegui capturar do filme. 3) SPOILERS. Deixe para ler esse texto após ver o filme.

Para entender o que o filme oferece ao pensamento, convém terminar pelo fim: A personagem Nina, jogada em um colchão, sussura, no limite de suas forças: "I was perfect". Da forma como entendo, perfeição é o grande tema do filme, muito mais do que os 'dois lados' da personagem Nina, tema que aparece muito nas críticas que encontrei. Portanto, cabe perguntar: O que é a perfeição? E vale ressaltar: A pergunta não se dirige a um tipo particular de perfeição, como, por exemplo, a perfeição na atuação do balé ou a perfeição em qualquer outra coisa. Para quem tem pensamento, o filme oferece um tema universal: A perfeição. O que é essa perfeição que todos desejam e perseguem? Costumamos revelar um pouco da grande mesquinhez humana ao pensarmos o sentido de perfeição: Entendemos perfeição como a ausência de erros, e mostramos um pouco de nossa mesquinhez ao sugerirmos que o erro é ruim e que não possui direito de existência (isso faz você pensar em Biutiful?). Ninguém gosta de errar. Nós brigamos - até matamos - com os outros por causa de erros. O erro é o patinho feio, ninguém quer ele por perto, pois, aparentemente, erro e perfeição são mutuamente exclusivos. Entendo que este não é o sentido original da palavra, e que há outro muito mais poderoso que este: perfeito é o per-fazido. O prefiro 'per' deriva do grego peri, que diz "em torno", e demarca um caminho, uma rota a ser percorrida por completo. Perfeito, assim, é aquilo que é feito por completo, do início até o fim, sem negar nenhuma etapa que constitui o fazer. O que Cisne Negro apresenta é justamente um fazer, o processo criativo de uma artista, de uma atriz, de uma dançarina.

Não por acaso, o filme começa com um sonho, a exposição a distância da perfeição, do ápice que se deseja atingir. Segundo o diretor da companhia de balé, a personagem Nina possui toda a competência técnica para executar a obra apresentada. No entanto, falta-lhe algo para cumprir toda a exigência da obra. Ela precisa entregar-se de completo a ela, render o próprio ser à obra para ensimesmá-la, fazer-se carne e sangue com o papel. Os críticos mencionam sobre descobrir um 'lado negro' da própria personagem, mas, da forma como eu entendo, isto é resumir demais o que acontece no filme. Antes de ser um 'lado negro', o Cisne Negro é o desconhecido que se explora em todo o tipo de criação artística. Não por acaso ele é apresentado ao leitor com o tempero do terror: O Cisne Negro é o espantoso, o assustador, o aterrorizante, aquilo que ultrapassa e transcende o homem, colocando-o na vizinhança com o divino. Se o Cisne Negro é a transcendência, então não convém dizer que se trata do 'lado negro' que nós humanos possuímos.

Se a personagem Nina possui toda a perícia técnica para a obra, falta-lhe essa entrega, esse fazer-se carne e sangue com a obra. E o tema do filme é justamente esse: O lento entregar-se da artista ao processo criativo que origina tanto artista quanto obra. Não nascemos artistas, precisamos nos tornar artistas. O problema é que não existe manual de instrução para virar artista: Ou você é, ou você não é. E o transformar-se em artista é totalmente súbito: Quando acontece, já aconteceu. O filme revela o florescer de Nina como artista. Portanto, não convém entender os 'surtos' como algum tipo de patologia, mas sim uma experienciação do lento entregar-se de Nina à obra interpretada. Como não existe manual de instrução para virar artista, o máximo que nós, humanos, podemos fazer é praticar e treinar incessantemente. Mesmo o grande Beethoven passava horas com a orelha colada em seu piano, a esmurrar nele sua Ode a Alegria, para certificar-se do que sabia e construir sua confiança. Mas isso não garante a obra: Como disse, ela ou acontece ou não acontece. A respeito disso, há uma história que conta que a mulher de Johann Sebastian Bach flagrou-o aos prantos certa vez. Perguntando a ele o que havia acontecido, Bach exibe a ela as partituras completas de sua Paixão segundo São Mateus, dizendo "Olha só o que aconteceu!". A história mostra um Bach completamente entregue à música. E entrega é um tema forte em Cisne Negro.

'Atuação' é um dos temas de Cisne Negro: Além de dançarina, Nina é atriz. Neste sentido, Cisne Negro também é uma reflexão sobre o próprio ofício do ator, e - por que não? - sobre o próprio cinema. O artista é um grande fingidor. Mas, fingir o próprio fingir demanda não apenas inspiração, mas um profundo conhecimento. A expressão 'conhecer' vem do latim 'cognoscere', que diz, literalmente: Nascer junto. Nesse sentido, conhecer alguma coisa significa irmanar-se dessa coisa, fazer com que o seu sangue seja o mesmo da coisa, partilhar com a coisa uma mesma alma. Ao fazer isso, Nina Sayers e Natalie Portman (serão as duas uma só?) revelam não apenas serem inspiradas, mas profundas conhecedoras do ofício de atuar.

O suspiro aliviado é o encerramento perfeito para toda a entrega no filme. Ali, a menina Nina morre e dá lugar à mulher, artista. Nina foi perfeita porque atravessou por completo tudo o que a obra a ofereceu, e também porque foi atravessada por completo pela obra. Suspira aliviado também quem assiste o filme, pois foi brindado com a exibição do que acontece com um artista quando se põe a interpretar.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Em torno do teismo e do ateísmo

Certa vez, participei de uma twitcam que discutia alguns temas relacionados ao teismo e ao ateísmo. Como estudante de filosofia, adoro esse tipo de discussão. E as pessoas que assistiam e participavam da conversa - algumas se declaravam ateus, enquanto outras diziam crer em deus - eram educadas e inteligentes, o que permitiu o fluir da conversa. Por causa de minha formação, fizeram várias perguntas acerca do tema na filosofia, como sobre a famosa afirmação marxiana que diz que "a religião é o ópio do povo", ou mesmo para explanar brevemente o que Nietzsche quis dizer com "deus está morto". E eles conseguiram compreender que os dois estavam apenas fazendo um diagnóstico da época onde viviam, e que não se tratavam de pensamentos que expõem argumentos teológicos.

Mas a pergunta que gerou mais incompreensão foi uma pergunta bastante simples. "- Você é ateu, ou você acredita em deus?", me perguntaram. A pergunta oferece duas opções e pede que você escolha uma delas: Ou uma, ou outra. A expressão 'Ou' marca uma relação exclusiva: Ser ateu e acreditar em deus são duas coisas opostas, e é impossível que uma pessoa seja as duas coisas ao mesmo tempo.

Enquanto estudante de filosofia, sei que existem argumentos imbatíveis para a existência e a não-existência de deus. Mas eles não vem ao caso agora. A questão é: Sou isso, ou sou aquilo? O que sou?

Entendo que só posso afirmar que sou teísta se puder sustentar que deus existem. Os argumentos e referências estão ai: Basta verificarmos a presença do sagrado nas diversas civilizações humanas, demonstrando que não se trata de simples falatório. Da mesma forma, só posso afirmar que sou ateu se puder sustentar que deus não existe. E os argumentos também estão ai: Os próprios gregos previram em textos a fura dos deuses do mundo, e vários pensadores (Plutarco, Lutero, Hegel, Nietzsche e Heidegger) desenvolveram longamente a tese da morte de deus. Os argumentos dos dois lados são poderosos, e você não pode simplesmente negá-los de forma arbitrária.

O grande problema é que vivemos em uma sociedade que espera que sejamos alguma coisa que ela possa reconhecer e controlar. Desse modo, é cômodo ser ateu ou teísta. O perigo consiste em apegar-se com tanta força a esse título a ponto de perder de vista o horizonte desde o qual a pergunta se coloca. De esquecer que, em última análise, não existe resposta definitiva acerca do divino. Nunca existirá. E, aliás, esse assunto não espera que nós o desvendemos. Antes, ele espera de nós crescimento e pensamento. E é por essa razão que existem teístas mais ateus que os ateus, e ateus mais teístas que os teístas.

A resposta que pude dar à pergunta foi negativa: Não sou ateu, e não sou teísta. Ou sou ateu e teísta ao mesmo tempo.

sábado, 1 de janeiro de 2011

O significado da liberdade de imprensa, ou: O oportunismo de Lula e o oportunismo de Demétrio Magnoli

"Liberdade é o direito de fazer
tudo o que as leis consentem"
Montesquieu
"Ninguém é mais escravo do que aquele
que se julga livre sem o ser"
Goethe

Em texto publicado no Estado de São Paulo, entitulada "Herói sem nenhum caráter", Demétrio Magnoli apresenta algumas informações sobre o WikiLeaks e uma crítica à Lula, o agora ex-presidente do Brasil. A leitura do texto não me chamou a atenção, pois não traz informações novas ou mesmo algo digno de reflexão. No entanto, retornei a ela após ler um texto de Caetano Veloso publicado n'O Globo (que pode ser lido aqui). Diz Caetano que a análise de Magnoli é luminosa, e que conduz o leitor ao cerne da questão de liberdade de imprensa. Ele também é mal educado ao qualificar quem são os possíveis críticos de Magnoli.

Retornei então ao texto de Magnoli, para ver se encontrava o que Caetano encontrou. E por isso escrevo isso, para dizer que Caetano Veloso está errado sobre esse texto.


O texto apresenta algumas informações sobre a WikiLeaks, afirma que Assange é um heroi - um herói estranho, mas herói -, afirma que os vazamentos rompem um princípio venerável do jornalismo, entre outros assuntos. No entanto, é a crítica que Magnoli faz a Lula que conclui o texto.

Que Lula foi oportunista ao sair em defesa da WikiLeaks não é ponto digno de polêmica. A oportunidade de ser o primeiro chefe de estado ao sair em defesa de Julian Assange e seu grupo estava lá, ele a viu e a agarrou, como um centro-avante que tem uma chance de gol e acerta o chute. E com rara felicidade o ex-presidente acertou no alvo.

Magnoli critica Lula confrontando seu apoio ao WikiLeaks com o silêncio do ex-presidente em relação ao Irã e a Cuba, e em casos de censura no Brasil. Ele está certo em observar este comportamento ambíguo do ex-presidente. No entanto, isto constitui apenas em um desvio do verdadeiro X da questão, o ponto nevrálgico e mais importante do assunto. O ponto principal do assunto em torno da WikiLeaks não é o comportamento ambíguo de nosso ex-Guia, ou se Assange é um herói ou um herói estranho, mas esse: Até agora, apenas dois chefes de estado manifestaram apoio à WikiLeaks. Todos os outros silenciam. O vice-presidente do estado mais poderoso do mundo diz que Assange é um cyber-terrorista. A questão-chave deveria ser a pandemia de ignorância acerca da liberdade de imprensa.

Magnoli teve a chance de tocar no espinhoso e necessário tema ao contar ao leitor que a publicação dos cabogramas viola um princípio venerável no jornalismo. Nas palavras de Magnoli: "A imprensa não publica tudo o que obtém. O jornalismo reconhece o direito à confidencialidade no intercâmbio normal de análises que circulam nas agências de Estado, nas instituições públicas e nas empresas"
. No entanto, o texto não passa disso. Ele assume como óbvio que sabe o que é liberdade de imprensa, assume que o leitor sabe o que é liberdade de imprensa e assume que esta noção é a mesma nele e no leitor. Aqui Magnoli se converte no mesmo blogueiro chapa-branca que crítica em seu texto: Ele simplesmente reproduz informações há muito ditas, sem oferecer temas para uma meditação. Incapaz de apresentar mesmo uma pequena reflexão acerca do sentido da liberdade de imprensa, precisa recorrer às 'fugas' para completar o texto, e por isso critica Lula de forma oportunística.

Perguntamos, então: o que é liberdade de imprensa? Obviamente, a pergunta apenas se esclarece se pensarmos o que significa liberdade. Normalmente, entendemos liberdade como uma espécie de soltura: Se não existem correntes prendendo nossas mãos ou pés ou nos fincando em um lugar específico, somos livres. Se as correntes não nos escravizam, então estamos livres. No entanto, será que estar livre das correntes equivale à ser livre? Ora, é possível estar liberto de amarras e correntes mas pensar como um escravo. Se, por um lado, as correntes não mais estão ali, por outro lado o pensamento permanece o mesmo. Sem amadurecimento e aprendizado não há liberdade possível. E como não existe manual de instrução que ensine com 100% de segurança a fórmula da liberdade, não temos outra escolha senão tentarmos ser livres através da tentativa e do erro. E será assim até não existirem mais humanos, pois este manual de instrução jamais existirá. Se assumimos que temos que constantemente aprender a ser livres, então devemos admitir que, na maior parte das vezes, somos escravos, e escravos de muita coisa: De nossa arrogância, comodidade, ignorância, entre outros grandes escravocratas.

Liberdade supõe, portanto, amadurecimento e aprendizado. Liberdade é menos "liberdade de" e mais "liberdade para". É preciso ser livre para o jornalismo, o que significa saber que se deve constantemente aprender a ser livre. Infelizmente, o que vemos em boa parte do jornalismo brasileiro são jornalistas arrogantes e que acham que são livres, quando são incapazes de mover uma mínima reflexão em torno da liberdade de imprensa. A melhor forma de defender a liberdade de imprensa não é invocar a cláusula pétrea que a protege, mas o constante aprendizado e reflexão em torno da liberdade. Afinal, tal cláusula pétrea é consequência, e não causa, deste aprendizado.

Porque o El Pais publica os vazamentos, ou: A incompetência das elites políticas

Por Javier Moreno, editor do El Pais, livremente traduzido por mim

"Cínicos irão argumentar que nada do que aprendemos com a WikiLeaks difere do modo usual como a política internacional de alto nível é conduzida, e que um mundo sem segredos diplomáticos é ainda menos organizável e mais perigoso para todos. As classes políticas de ambos os lados do atlântico distribuem uma simples mensagem que é ajustada para levarem vantagem: confiem em nós, não tentem revelar nossos segredos; em troca, nós oferecemos a você segurança.

Mas exatamente quanta segurança eles podem realmente oferecer em troca deste suborno moral? Pouca ou nenhuma, uma vez que estamos diante de um triste paradoxo onde esta é a mesma elite política que foi incapaz de supervisionar com propriedade e crise do sistema financeiro internacional, cuja implosão disparou a maior crise desde 1929, arruinando países inteiros e condenando milhões ao desemprego e pobreza. Estes são as mesmas pessoas responsáveis pela deteriorante qualidade de vida de suas populações, pelo incerto futuro do euro, pela falta de um projeto Europeu viável e a crise global de governança que controlou o mundo nos anos recentes, crise da qual as elites em Washington and Brussels não são esquecidas.

A incompetência dos governos Ocidentais e sua inabilidade para lidar com a crise econômica, mudanças climáticas, corrupção ou a guerra ilegal no Iraque e outros países foi eloquentemente exposta nos anos recentes. Agora, graças à WikiLeaks, nós também sabemos que nossos líderes são também conhecedores das suas vergonhosas falibilidades, e que é apenas graças à inércia da sua maquinaria de poder que eles tem sido capaz de cumprir suas responsabilidades democráticas e responder ao eleitorado.

A poderosa maquinaria de estado é moldada para suprimir o fluxo da verdade e para manter segredos em segredo. Nós estamos vendo nas semanas recentes como a maquinaria foi colocada em ação para tentar limitar o dano causado pelas revelações da WikiLeaks.

Considerando o dano recebido nas mãos da WikiLeaks, não é difícil ver porque os Estados Unidos e outros governos Ocidentais tem sido incapaz de resistir à tentação de concentrar a atenção em Julian Assange. Ele parece um alvo fácil demais, e então eles procuraram questionar sua motivação e o modo como WikiLeaks trabalha. Eles também procuraram questionar porque cinco grandes organizações com prestigiosa reputação internacional concordaram em colaborar com Assange e sua organização. Estas são questões razoáveis, e foram todas respondidas satisfatoriamente ao curso das quatro últimas semanas, apesar da pressão posta sobre nós pelo governo, e, pior ainda, por muitos de nossos colegas de imprensa"

Este pequeno pedaço de texto é uma aula de como o jornalismo deve acontecer.

Leia o texto inteiro clicando aqui

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O trono da morte

Neste post, segue uma reflexão em torno do casamento e da mulher. O texto é um trecho do capítulo chamado 'O trono da morte', presente no livro Asas Partidas, de Khalil Gibran. O livro é imperdível.

O trono da morte, por Khalil Gibran.

O matrimônio em nossos dias é um comércio que faz rir e chorar, pois está nas mãos nos rapazes e nas mãos dos pais das moças. na maioria dos casos, os rapazes ganham. Os pais das moças perdem sempre. Quanto às moças, que passam de um lar para outro como móveis, sua vitalidade fenece e, como os móveis velhos, acabam sendo postas nos cantos das casas, vítimas da escuridão e de uma lenta destruição.

A civilização atual, ainda dominada pela ganância do homem, desenvolveu um pouco a percepção da mulher, mas aumentou muito suas dores. Ontem, a mulher era uma serva feliz; hoje, é uma senhora infeliz. Ontem, era uma cega que andava à luz do dia; hoje, tem visão, mas anda nas trevas da noite. Ontem, era bela na sua ignorância, virtuosa na sua ingenuidade, forte na sua fraqueza; hoje, tornou-se feia na sua sofisticação, superficial nos seus conhecimentos, distante do coração pelas suas pretensões. Virá um dia em que a mulher reunirá a beleza e o conhecimento, a arte e a virtude, a fraqueza do corpo e a força da alma?

Sou dos que dizem que a ascenção espiritual é uma das leis da humanidade, e a aproximação da perfeição, uma tendÊncia lenta, mas real. Se a mulher progrediu em certas coisas e regrediu em outras, é porque os obstáculos que nos impedem de atingir o cume incluem os antros dos saltimbancos e as covas dos lobos. Nesta nação que vive uma época similar à letargia que precede o despertar, nesta nação estranha pelas suas inclinações e aspirações, onde se amontoam o pó das gerações passadas e as sementes das gerações futuras, cada cidade possui uma mulher que simboliza a filha do amanhã. Selma Karame era em Beirute o símbolo da mulher oriental do amanhã. Mas, como muitos que vivem antes do seu tempo, foi vítima do seu tempo; e como uma flor que a correnteza do rio arrancou, foi levada apesar de si mesma pelo cortejo da vida para a infelicidade.

Mansur bei Galeb desposou Selma; e instalaram-se juntos numa casa luxuosa à beira do mar, em Ras Beiture, onde moram os homens mais ricos e inflientes. Fares Karame permaneceu naquela casa isolada, no meio dos parques e dos jardins, tal um pastor no meio de seu rebanho. E os dias de festa e as noites de alegria passaram, e a lua que os homens chamam de mel também se foi, seguida por luas de vinagre e fel, como as glórias das guerras deixam as caveiras nos campos longíncuos.

O esplendor dos casamentos orientais leva as almas dos jovens para além das núveus, como águias, e depois as lançam ao chão com a força da pedra de debulhar caindo no mar. Como pegadas impressas na areia da praia, as ondas logo o apagam.

A primavera se foi, e depois o verão. E chegou o outono. Meu amor por Selma evoluia da paixão de um jovem no amanhecer da vida por uma bela mulher, para aquela adoração muda que o pequeno órfão sente pela alma de sua mãe morando na eternidade. O afeto que dominava meu ser transformou-se numa melancolia cega que não vê mais o mundo, mas vê apenas a si mesma; e o amor que tirara lágrimas dos meus iolhos tornou-se idolatria que tirava gotas de sangue de meu coração; e o gemido de saudade que havia repercutido em mim tornou-se uma prece profunda que minha alma elevava no silêncio, pedindo felicidade para Selma, e contentamento para seu marido e paz para seu pai. Mas em vão sofria eu e solicitava e orava, porque a infelicidade de Selma era um mal que fazia parte da sua alma. Somente a morte podia curá-la.

Quanto a seu marido, era um desses homens que conseguem sem esforço tudo o que torna a vida confortável, mas nunca se safistazem e cobiçam sempre o que naõ lhes pertence, atormentados por sua ganância até o fim da vida.

(...)

Assim periclitam os povos entre os ladrões e os escroques, como os rebanhos são devastados pelas garras dos lobos e os facões dos açougueiros. Assim as nações orientais se submetem a líderes de almas tortuosas e caráter pernicioso, e acabam derrotadas. O destino passa, então, por cima delas e as esmaga sob seus pés como o martelo dos ferreiros esmagam vasos de argila.

Mas por que estou enchendo estas páginas com considerações sobre povos desgraçados e desesperados em vez de consagrá-las, como queria, a narrar a história de uma mulher infeliz e a descrever os sonhos de um coração ferido que o amor, mal o havendo tocado com suas alegrias, já o esbofeteava com suas dores... Por que as lágrimas enchem meus olhos à menção de povos decadentes e oprimidos, quando queria reservar minhas lágrimas para chorar a sorte de uma mulher frágil que a morte arrancou à vida no primeiro dia de primavera? Contudo, naõ é a mulher fraca o símbolo da nação oprimida? Não é a mulher, crucificada entre as aspiações de sua alma e as cadeias de seu corpo, similar à nação crucificada entre seus governantes e sacerdotes? Não são os sentimentos secretos que levam uma linda jovem às trevas do túmulo iguais às tempestades violentas que cobrem a vida dos povos com o pó da terra? A mulher é para a nação como a luz é para a lâmpada. Quando a luz da lâmpada está fraca, não é porque lhe falta o óleo?

Assim, quando o desespero enfraquece nossa visão, não mais vemos senão a sombra dos nossos temores. Assim, quando o desânimo ensurdece nossos ouvidos, não mais ouvimos senão as pulsações de nossos corações agitados.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Adendo ao último post

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Os ombros suportam o mundo,
de Carlos Drummond de Andrade