sábado, 5 de fevereiro de 2011

Cisne Negro

Assisti ao filme Cisne Negro, preciosidade cinematográfica de Darren Aronofsky. Empolgado pelo filme, comecei a procurar por textos, críticas e depoimentos de outras pessoas. Não encontrei nas críticas o que eu encontrei no filme. O empolgante comentário de @mausaldanha no seu Cabine Celular me encheu de vontade de fazer o que ele não pôde fazer ali, dada a natureza de seu trabalho: uma discussão um pouco mais aprofundada (com spoilers) das coisas que o filme oferece para pensar. Fazem-se necessárias algumas advertências: 1) não entendo nada de cinema; 2) esse texto não pretende apresentar um 'modo definitivo' de como ver o filme, mas apenas minha visão. Penso que um filme vale o tanto que ele oferece a pensar. O que está escrito aqui foi o que consegui capturar do filme. 3) SPOILERS. Deixe para ler esse texto após ver o filme.

Para entender o que o filme oferece ao pensamento, convém terminar pelo fim: A personagem Nina, jogada em um colchão, sussura, no limite de suas forças: "I was perfect". Da forma como entendo, perfeição é o grande tema do filme, muito mais do que os 'dois lados' da personagem Nina, tema que aparece muito nas críticas que encontrei. Portanto, cabe perguntar: O que é a perfeição? E vale ressaltar: A pergunta não se dirige a um tipo particular de perfeição, como, por exemplo, a perfeição na atuação do balé ou a perfeição em qualquer outra coisa. Para quem tem pensamento, o filme oferece um tema universal: A perfeição. O que é essa perfeição que todos desejam e perseguem? Costumamos revelar um pouco da grande mesquinhez humana ao pensarmos o sentido de perfeição: Entendemos perfeição como a ausência de erros, e mostramos um pouco de nossa mesquinhez ao sugerirmos que o erro é ruim e que não possui direito de existência (isso faz você pensar em Biutiful?). Ninguém gosta de errar. Nós brigamos - até matamos - com os outros por causa de erros. O erro é o patinho feio, ninguém quer ele por perto, pois, aparentemente, erro e perfeição são mutuamente exclusivos. Entendo que este não é o sentido original da palavra, e que há outro muito mais poderoso que este: perfeito é o per-fazido. O prefiro 'per' deriva do grego peri, que diz "em torno", e demarca um caminho, uma rota a ser percorrida por completo. Perfeito, assim, é aquilo que é feito por completo, do início até o fim, sem negar nenhuma etapa que constitui o fazer. O que Cisne Negro apresenta é justamente um fazer, o processo criativo de uma artista, de uma atriz, de uma dançarina.

Não por acaso, o filme começa com um sonho, a exposição a distância da perfeição, do ápice que se deseja atingir. Segundo o diretor da companhia de balé, a personagem Nina possui toda a competência técnica para executar a obra apresentada. No entanto, falta-lhe algo para cumprir toda a exigência da obra. Ela precisa entregar-se de completo a ela, render o próprio ser à obra para ensimesmá-la, fazer-se carne e sangue com o papel. Os críticos mencionam sobre descobrir um 'lado negro' da própria personagem, mas, da forma como eu entendo, isto é resumir demais o que acontece no filme. Antes de ser um 'lado negro', o Cisne Negro é o desconhecido que se explora em todo o tipo de criação artística. Não por acaso ele é apresentado ao leitor com o tempero do terror: O Cisne Negro é o espantoso, o assustador, o aterrorizante, aquilo que ultrapassa e transcende o homem, colocando-o na vizinhança com o divino. Se o Cisne Negro é a transcendência, então não convém dizer que se trata do 'lado negro' que nós humanos possuímos.

Se a personagem Nina possui toda a perícia técnica para a obra, falta-lhe essa entrega, esse fazer-se carne e sangue com a obra. E o tema do filme é justamente esse: O lento entregar-se da artista ao processo criativo que origina tanto artista quanto obra. Não nascemos artistas, precisamos nos tornar artistas. O problema é que não existe manual de instrução para virar artista: Ou você é, ou você não é. E o transformar-se em artista é totalmente súbito: Quando acontece, já aconteceu. O filme revela o florescer de Nina como artista. Portanto, não convém entender os 'surtos' como algum tipo de patologia, mas sim uma experienciação do lento entregar-se de Nina à obra interpretada. Como não existe manual de instrução para virar artista, o máximo que nós, humanos, podemos fazer é praticar e treinar incessantemente. Mesmo o grande Beethoven passava horas com a orelha colada em seu piano, a esmurrar nele sua Ode a Alegria, para certificar-se do que sabia e construir sua confiança. Mas isso não garante a obra: Como disse, ela ou acontece ou não acontece. A respeito disso, há uma história que conta que a mulher de Johann Sebastian Bach flagrou-o aos prantos certa vez. Perguntando a ele o que havia acontecido, Bach exibe a ela as partituras completas de sua Paixão segundo São Mateus, dizendo "Olha só o que aconteceu!". A história mostra um Bach completamente entregue à música. E entrega é um tema forte em Cisne Negro.

'Atuação' é um dos temas de Cisne Negro: Além de dançarina, Nina é atriz. Neste sentido, Cisne Negro também é uma reflexão sobre o próprio ofício do ator, e - por que não? - sobre o próprio cinema. O artista é um grande fingidor. Mas, fingir o próprio fingir demanda não apenas inspiração, mas um profundo conhecimento. A expressão 'conhecer' vem do latim 'cognoscere', que diz, literalmente: Nascer junto. Nesse sentido, conhecer alguma coisa significa irmanar-se dessa coisa, fazer com que o seu sangue seja o mesmo da coisa, partilhar com a coisa uma mesma alma. Ao fazer isso, Nina Sayers e Natalie Portman (serão as duas uma só?) revelam não apenas serem inspiradas, mas profundas conhecedoras do ofício de atuar.

O suspiro aliviado é o encerramento perfeito para toda a entrega no filme. Ali, a menina Nina morre e dá lugar à mulher, artista. Nina foi perfeita porque atravessou por completo tudo o que a obra a ofereceu, e também porque foi atravessada por completo pela obra. Suspira aliviado também quem assiste o filme, pois foi brindado com a exibição do que acontece com um artista quando se põe a interpretar.

Um comentário:

Houldine Nascimento disse...

Maravilha de texto. Uma análise muito além do aparente, amigo Bruno. Penso que Cisne Negro é um dos filmes subestimados no Oscar deste ano. Recebeu cinco indicações, o que é muito pouco. Ficou ausente de pelo menos três categorias: trilha (a melhor do ano), roteiro original e direção de arte. Poderia ainda receber nomeação na categoria atriz coadjuvante (Mila Kunis). Fico feliz pelo êxito desse filme, fundamentalmente de arte, mas que obteve sucesso comercial. Nunca vi um terror tão encantador quanto este.