quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Thich Quang Duc

Thich Quang Duc, vietnamita e monge budista, ficou famoso por ter ateado fogo no próprio corpo durante a guerra do Vietnã. Testemunhas dizem que ele permaneceu imóvel e em silêncio enquanto as chamas consumiam o seu corpo. Dizem as línguas que ele fez isso para protestar... gostaria de falar um pouco sobre isso.

Derek Bishop, num site, diz que a ação do monge foi errada. "I wish to underscore that what Thich Quang Duc did was wrong", 'Gostaria de sublinhar que o que Thich Quang Duc fez é errado'. Bishop ainda faz uma crítica ao budismo e a várias outras experiências místicas humanas, acusando-as de criarem um âmbito fora do mundo que é tomado como ideal, fazendo com que o homem esqueça de cuidar das 'coisas terrenas'. Por fim, Bishop diz que a ação do monge e o discurso búdico sobre o fogo não são sinais de um pensamento holístico, integrador e emancipatório. Em suma, Derek parece repetir a crítica nietzscheana ao cristianismo e a toda forma de além-mundo.

Eu não conheço o budismo. Então, na minha qualidade de desconhecedor do budismo, gostaria de dizer que Derek Bishop também desconhece budismo. Além disso, parece ignorar que uma guerra terrível, mais terrível do que nós podemos imaginar, aconteceu lá. É uma situação parecida a que Saint Exúpery vivenciou, a ponto de fazê-lo admitir: "Odeio este planeta", "Odeio a minha época com todas as minhas forças", "tenho a impressão de estar caminhando para os tempos mais negros do mundo". Saint Exúpery disse isso acerca da segunda guerra mundial. Algumas décadas depois, eclodiu a guerra do Vietnã. Pasmem: um dia de operação nesta guerra superou (em termos de energia, de poder utilizado) quase a totalidade da segunda guerra mundial, de acordo com alguns estudos. Mas Exúpery ainda teve alguma sorte: encontrou alguma paz no deserto do Saara, onde pode escrever Homens da Terra e experimentar o que é um mundo cheio de sentido e coisas belas. Exúpery chega a admitir que os desertos não estão onde pensamos: o Saara, para ele, era muito mais vivo que Paris.

Thich Quang Duc vivenciava um momento complicado: os monges budistas eram perseguidos por soldados sob a acusação de acolherem 'criminosos', templos eram cercados... enfim, o que ele considerava o maior tesouro do Vietnã, o budismo, estava sendo esquecido. Se nos colocarmos nessa situação, podemos ser tomados por uma tristeza sem medida, por uma depressão avassaladora e uma total descrença no mundo onde vivemos. A distância e a segurança de nossas casas nos impede de conhecer esse tipo de desespero. Quero atentar aqui para a palavra, des-espero, é o estado de espírito que se instaura quando toda espera (toda esperança) se revela vã. Quando não se abre mais nenhuma possibilidade de que as coisas sejam diferentes. Nessas horas, vale tudo: quem seria capaz de, num momento desses, respeitar o poderoso 'Não matarás'?

É verdade que, visto sob um ponto de vista prático, a ação de Thich repercutiu no mundo inteiro, e levou as pessoas a refletirem acerca da guerra. Mas, penso eu, não é este o sentido da ação do monge. Há um outro sentido na ação de Thich que considero vital. Como já disse antes, Thich viveu num periodo complicado. Certamente, sentiu e viu coisas que o fizeram questionar tudo. Subitamente, todo o mundo perdeu o sentido. O que antes era um cosmos organizado, transformou-se em caos, e sem a perspectiva. Muitos não suportam este tipo de desespero - ele é para poucos. Thich estaria sendo coerente com tudo o que aconteceu e com tudo o que imaginamos que se passou com ele se pegasse em armas e expulsasse, com tiros e violência, os estrangeiros. Mas, o monge ateou fogo no próprio corpo. Por quê?

Thich procurou ser o próprio Buda, em certo sentido. Ele buscou a redenção, procurou purificar o desespero que deve ter lhe abatido para recuperar uma certa virgindade, inocência. Sua ação foi ainda mais radical que o "oferecer a outra face" cristão. Para ele, aquele mundo não fazia sentido. Podemos aqui lembrar de Rainer Maria Rilke: o verdadeiro poeta não necessita de 'coisas bonitas'. Ele é poeta até mesmo trancado em um quarto escuro. Penso que, tomado pelo desespero da guerra, Thich sentiu vergonha de si, pois o mundo não fazia mais sentido, não havia mais beleza, não havia mais um por quê. Thich acreditou na humanidade e ateou fogo em si: era ele quem precisava ser purificado, e não a humanidade. Acredito este ser o sentido da purificação. Purificar os desejos não significa punir o corpo e ascender ao céu. Thich sentiu-se como um poeta trancado em um quarto escuro e sem acesso a qualquer tipo de inspiração. Então, transformou seu próprio corpo em inspiração.

Não acho que posso dizer se a ação dele é certa ou errada. Penso que são em momentos terríveis assim que descobrimos quem realmente somos. Thich Quang Duc não desistiu de sua humanidade. Ele não suportou a idéia de ser alguém mesquinho e baixo, e optou por purificar tal idéia com o fogo.

O site onde Bishop fala é este (correção: o site saiu do ar, infelizmente).

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