quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A guerra

A pesquisa que ando desenvolvendo gira em torno da guerra. Quero explicar um dos motivos que me faz estudar isto com afinco: quero descobrir porque o Ocidente, antes de todas as outras culturas, transformou a guerra de extermínio no elemento central de sua cultura. Nenhuma outra cultura, a não ser o ocidente, poderia ter colocado todas as suas forças a serviço da arte de matar como, por exemplo, fizeram os europeus em Verdun, palco de uma terrível batalha durante a primeira guerra mundial: uma abordagem industrial sustentada da matança pior que qualquer massacre tribal. Nenhuma tribo indígena americana ou zulu poderia comandar, suprir, armar, matar e substituir centenas de milhares de homens durante meses a fio em nome de causas políticas abstratas. O mais famoso dos índios, temido por comer o coração de seus adversários para tomar-lhe a força, teria voltado para casa depois da primeira hora em Gettysburg, na guerra civil americana.

Um dos motivos dessa letalidade, penso eu, está no fato da guerra ocidental não ser perturbada por rituais, tradições, religiões ou ética, mas apenas pela necessidade militar. Em suma, o que me interessa nessa pesquisa é descobrir porque o ocidente viu na guerra um método para fazer o que sua política não consegue, estando dispostos a destruir, ao invés de impedir ou humilhar, quem quer que esteja em seu caminho. Dou de cara com umas coisas enquanto pesquiso e fico angustiado. Mesmo quem conseguiu escapar de tiros e granadas teve a sua vida totalmente destruída pelos fantasmas da guerra.

Bem, segue o texto que serviu de molde para uma apresentação sobre Nietzsche que fiz, há algum tempo, para o grupo PET de psicologia na UFES. A apresentação foi chamada de Ciência e Política no pensamento de Nietzsche. Isso é apenas um molde, não é um texto completo e detalhado.

Aforismo n. 373 da Gaia Ciência, Ciência como preconceito: “Que a única interpretação justificável do mundo seja aquela em que vocês são justificados, na qual se pode pesquisar e continuar trabalhando cientificamente no seu sentido, uma tal que permite contar, calcular, pesar, ver, pegar e não mais que isso, é uma crueza e uma ingenuidade, dado que não seja doença mental, idiotismo”. Crueza e ingenuidade porque tal movimento se dá a partir de uma cristalização numa perspectiva dada, onde, assim, o que se procura é assegurar o conhecimento já possuído, procurando estabelecê-lo como o único meio a partir do qual se deve ler o real. Para Nietzsche, tal movimento se funda num erro: o de pensar que existem verdades em si, que excluem totalmente a não-verdade, procurando estabelecer a perspectiva verdadeira hegemonicamente, não sendo aberta a outras. A sedimentação, estruturação e sistematização desse erro Nietzsche chama de “Conhecimento”, apontando para a Teoria do Conhecimento (Descartes). “Queremos de fato permitir que a existência nos seja de tal forma degradada a mero exercício de contador e ocupação doméstica de matemáticos? Acima de tudo, não devemos querer despojá-la de seu caráter polissêmico: é o bom gosto que requer, meus senhores, o gosto da reverência ante tudo o que vai além do seu horizonte”.

A ciência tende, assim, a unidimensionalizar a realidade, fazê-la aparecer sob uma perspectiva, uma dimensão. A compreensão unidimensional da realidade atinge a tudo, inclusive, o homem, e engloba toda a realidade. Esta 'cientifização' do real contaminou também a política, é o que parece nos dizer Nietzsche. A universalização dessas noções está no bojo da crítica que Nietzsche faz a política de seu tempo, que está enraizada em compreensões universais e vazias do que sejam as coisas. “A humanidade! Já existiu velha mais medonha, entre todas as velhas? Não, nós não amamos a humanidade; por outro lado, estamos longe de ser suficientemente “alemães”, como hoje é corrente a palavra “alemão”, para falar em prol do nacionalismo e do ódio racial, para poder nos regozijar do nacionalista envenenamento do sangue e sarna de coração, em virtude do qual cada povo da Europa de hoje se fecha e se tranca, como se estivessem todos de quarentena”. Se por um lado Nietzsche nega uma visão universal do homem, por outro, também rejeita ser um “alemão”, pois os nacionalismos que surgem são, para Nietzsche, um contra-movimento ao universalismo: os nacionalismos são movimentos onde os povos procuram se afirmar como A humanidade, como a via segura, plena e certa da humanidade. “Bem preferimos viver nas montanhas, à parte, 'extemporaneamente', em séculos passados ou vindouros, apenas a fim de nos poupar o mudo furor a que nos saberíamos condenados, como testemunhas de uma política que torna desolado o espírito alemão, ao torná-lo vão, e que é, além de tudo, política pequena: não necessita ela plantar sua própria criação entre dois ódios mortais, para que esta não se desfaça imediatamente? Não tem ela de querer a perpetuação dos pequenininhos Estados europeus?”. Segundo Nietzsche, à medida que os povos Europeus buscam afirmar-se enquanto a humanidade, não enquanto eles mesmos, cria-se ai um ambiente perfeito para gestar a criação da “política pequena”, que é a própria criação da vontade de verdade: de uma tranquilidade que permita ao homem furtar-se de ter de vir a ser o que ele é. A política pequena, assim, é o reino da subjetividade humana, o lugar onde se decide a perpetuação do que é velho e doente, onde se preza pela tranquilidade. Esse periodo, para Nietzsche, é a “era clássica da guerra, da guerra instruída e ao mesmo tempo popular na maior escala (dos meios, dos talentos, da disciplina)”.

À guisa de conclusão, tentarei acenar para o que Nietzsche chama de “Grande Política”. A Grande Política pode ser compreendida como a política dos sem-patria. O próprio Nietzsche considera-se um sem-patria, pois sente-se um completo estranho no lugar onde vive: “Não 'conservamos' nada, tampouco queremos voltar a algum passado, não somos em absoluto 'liberais', não trabalhamos para o 'progresso' (...)”. Nietzsche não concebe a habitação do homem, sua pátria, como sendo determinada biologicamente, como o pertencimento a uma raça, ou nacionalmente, como o pertencimento a um tipo de nacionalismo. O sem-pátria, para Nietzsche, é aquele que sempre e a cada vez precisa conqusitar a sua casa, a sua pátria, o seu lugar. E isso se dá porque tal lugar é algo que sempre se perde. Um fragmento de Heráclito, pensador que Nietzsche admira, pode nos ajudar a esclarecer: “A morada do homem, o extraordinário” (frag. 119). A morada do homem – onde ele sempre está, o local que lhe é mais ordinário, comum – é o extraordinário. Com o extraordinário, porém, não se pode lidar ordinariamente – não se pode lidar buscando a tranquilidade, segurança, previsibilidade, mas torna-se necessária uma lida extraordinária com o extraordinário – uma lida que procure originariamente (no sentido de haurir da origem, não de compreensões derivadas dela), sempre e a cada vez, ser o que ele mesmo é. A Grande Política, assim, não se esgota nunca em um sistema político, mas sim a forma como podemos pensar a via pela qual o homem estabelece os seus lugares no mundo. A Grande Política gira em torno do tornar-se familiar com o mundo, no sentido de transformá-lo em sua morada.

Nenhum comentário: