É sabido e batido que, hoje, o futebol é tudo, menos futebol. Ele é cada vez mais uma gigantesca indústria que movimenta bilhões e bilhões de reais, e cada vez menos futebol. Também é sabido e batido o sentimento nostálgico que nos ataca quando comparamos o futebol do passado com o futebol de hoje, este futebol-indústria, futebol-dinheiro, este futebol maltratado por tudo e todos.
Diante destas evidências, perguntamos: será possível e razoável imaginar um futuro onde o futebol seja mais livre, um futuro onde exista um futebol mais futebolístico?
A pergunta não exige resposta imediata, mas reflexão. Nesse sentido, cabe perguntar: o que é o futebol? O que é o esporte?
Não é preciso ir muito longe para obter um aceno, uma pista. Basta prestar atenção na linguagem. A palavra 'esporte' deriva do antigo francês desport (de onde vem o nosso 'desporto'). É formada por des, que diz 'longe', e porter (do latim portare), que diz 'levar', 'carregar'. O esporte é algo que nos carrega para longe. Podemos perguntar: longe do que? Os estudiosos estimam que a palavra nascera em 1300, periodo próximo ao da conhecida Guerra dos Cem Anos. Esta informação nos dá a medida exata do que o esporte procura afastar o homem. É por isso que, em francês, desporter significa 'afastar a mente dos assuntos sérios', e 'desporto' e 'esporte' significam 'jogo', 'atividade lúdica', 'passatempo prazeroso'.
Isso faz do esporte – e do futebol – algo leviano? Não. A palavra ‘esporte’ diz: o futebol é algo que acontece quando todos os ‘assuntos sérios’ estão resolvidos. Quando o homem não precisa se preocupar em ter comida para si e seus filhos, quando não precisa se preocupar em proteger sua própria vida do outro, em suma, quando as condições básicas de sua existência estão satisfeitas, ali começa o futebol. E ali o homem está livremente entregue ao futebol, pois não há nenhum ‘assunto sério’ (pense em uma guerra) lhe roubando a liberdade. E então, livre, o homem doa ao futebol todo o seu sangue, coração, fogo, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade. Deste modo, o futebol é manifestação livre e gratuita do que há de belo no homem, pois o homem o faz por fazer, sem precisar de porquês ou justificativas posteriores. E é por isso que o esporte é belo, e é por isso que somos amantes do esporte. Esta é a essência e o significado primeiro do esporte, e, por extensão, do futebol.
Apesar disso, verificamos que nossa situação é totalmente refratária ao futebol. Se, de um lado, o futebol é algo que nos leva para longe dos ‘assuntos sérios’, por outro lado, o futebol é o sonho de fartura e dignidade para os milhões que não possuem o básico. Através do futebol, sonham em obter o básico que lhes é negado. Isto, por si só, perverte o futebol. Pois a situação, como uma mestra megera, o obriga a tornar-se algo sério. A partir daí diversas aberrações ganham espaço. Em nome do futebol, passa a ser válido matar outros homens nos estádios em nome do futebol. Em nome do futebol, passa a ser válido todo o tipo de armação que garanta a vitória. Todas essas perversidades nascem quando o futebol se torna sério. Os dirigentes, ao invés de implementar as soluções tecnológicas que ajudariam o futebol, preferem deixá-lo agonizando. Mas esta ajuda é apenas um amargo remédio: o grave é nos encontrarmos na necessidade do remédio, e não existe solução tecnológica que nos salve.
O futebol tornou-se um negócio. Não se quer saber mais do futebol propriamente dito: interessa apenas é que ele esteja sempre à disposição dos consumidores. Ao invés de dizer o que e como o futebol é, a mídia o vende como o magnífico espetáculo que ele já não é. Tudo em nome do negócio. Por isso, nosso país foi colocado à disposição do futebol-indústria, que consumirá o suado dinheiro do povo para acontecer em 2014. Em nome do futebol, colocamos nosso lar inteiramente à disposição. Em um segundo, reduzimos um pais e um povo à simples matéria prima, da qual esperamos os recursos que garantam uma copa do mundo.
Por todos os lados o futebol é dominado e controlado. Por todos os lados reina o futebol-indústria, o futebol-negócio. Em lugar algum, o futebol-futebol, o simplesmente futebol.
Longe do olhar de todos, o futebol cora, incompreendido, envergonhado de tudo e gritando por liberdade. Obrigam-no a se comportar como velho ranzinza e jogam sob seus ombros – de criança – a responsabilidade de suportar o mundo. O futebol vive num hoje onde o futebol é uma ordem. Quando transformamos o futebol em algo sério, roubamos dele a coisa básica que sustenta sua existência: a liberdade. Pois não é só o homem que respira liberdade. Também o futebol deseja ser só e apenas futebol. Também o futebol quer ser livre.
Será possível imaginar um futuro onde o futebol seja mais livre, um futuro onde exista um futebol mais futebolístico? A pergunta é grave. Pois, hoje, vigora uma crescente indiferença do homem em relação ao que há de essencial no futebol e no esporte como um todo. Ainda não sentimos isso na pele porque, se nós nos tornamos indiferentes a eles, eles ainda não se tornaram indiferentes a nós. E se um dia se tornarem? Haverá volta?
A resposta – se é que isso existe – à pergunta reside na reflexão em torno de uma outra pergunta, que é ainda mais grave e urgente.
Será possível e razoável imaginar um futuro onde o homem seja mais livre?